Parte Onze - Sem casa, sem volta.

Eu poderia me desesperar. Poderia gritar e até correr para abraçá-la mas optei em ficar ali parada, frente a frente com ela, absorvendo sua atmosfera e inclusive, dividindo o mesmo ar. Não sabia se poderia continuar chamando-a de mãe ou se deveria chamá-la pelo seu nome. Ela estava tão diferente e ao mesmo tempo tão igual. Foi ai que aquela nostalgia te ataca com uma estocada única e por mas que tente driblar a saudade, acaba se tornando algo impossível e só se intensifica.

- Sabia que iria me encontrar uma hora ou outra. - Devagar ela se aproximou de mim e todos os que estavam nos cercando abaixaram sua guarda. Dando a nós espaço e até mesmo, a chance de nos movimentarmos. Sara olhou para mim como se quisesse me reconhecer afinal, até ela percebeu como a sua própria filha estava diferente. Nada era como antes. Nem mesmo a antiga Melanie que agora, mal conseguia deixar a aquela casca dura e cicatrizada sair.

- Porque fez tudo isso? - Sussurrei. Sara já estava bem perto de mim bem entre mim e Michael, que agora me olhava de longe como se quisesse dizer para mim não cair em uma palavra que fosse. Essa era a parte boa dos caçadores, eles não confiam em ninguém. Nem mesmo em si mesmo, nem na própria sombra.

- Porque eu fiz o que? - Ela estava sendo cínica. Seu rosto tinha sequer uma ruga de preocupação ou um sorriso de felicidade em ver a própria filha ali. Se ela era como um deles, o que estava bem na minha cara, ela estava sabendo se conter bem. Ouvindo cada batida do meu coração de nervosismo e ciente de qualquer trapaça que eu pudesse fazer.

- Porque nos abandonou? Porque deixou a mim, a Beatrice, Pedro e o papai? Bem quando a gente mais precisava de você. - Finalmente ela pareceu entender. Suas mãos encostaram na minha pele e eram frias a ponto de queimar em contato comigo. Seus olhos antes no mesmo tom que o meu agora estavam mais escuros, sombrios e misteriosos. Até a própria sobrancelha ela havia tingido, com certeza no intuito de se diferenciar, mas quem conhecesse Sara muito bem, iria saber exatamente quem era ela.

- Vou responder todas as suas perguntas com o tempo. Não agora. Vocês precisam ir embora, agora! Antes que eles comecem a desconfiar de vocês aqui e resolvam atacá-los. Vocês se arriscaram demais vindo aqui. - Era impressão minha ou ela ainda assim estava me dando um sermão? Respirei fundo e Michael veio até mim, me separando de Sara e me puxando para trás do seu corpo.

- Não percebe que esta machucando a sua filha fazendo isso? Agindo como uma estúpida e tentando fugir da sua responsabilidade? Como pode se tornar um deles e largar tudo?

- Ora, ora. Nem me conhece ou sabe da minha história para tentar entender o que de fato ocorreu. Foram as circunstâncias meu querido. Não por que eu quis. Fiz isso para proteger a todos, inclusive, foi pensando nos meus filhos que fiz isso. Inclusive nela! - Sara apontou para mim e sorriu. Pude ver suas presas pontudas. Era tudo tão desafiador. - Agora vá embora. Proteja ela de todas as formas possíveis. Você sabe bem como nós somos. Posso até eu não ser perigosa, mas quanto aos outros. É questão de tempo até irem atrás dela novamente.

E então ela desapareceu. Ela foi rápida o bastante para deixar apenas seu perfume no ar, e uma dúvida enorme pairando sobre as nossas cabeças. Suspirei e Michael foi me puxando rápido para fora daquele lugar. Corri um pouco para acompanhá-lo, e quando me sentei no banco do carro a minha cabeça ainda girava. Era um misto de dúvidas, lembranças, saudades e uma dose bem grande de realidade. Coisa que não estava mais acostumada.

Naquela mesma noite, Michael e eu havíamos discutido feio a ponto de cada um dormir de costas para o outro no mesmo quarto. Estava começando a me acostumar com a ideia de abraçá-lo forte e cochilar em seus braços e só perceber que peguei no sono, quando despertasse no outro dia ou apenas, acordasse com outro pesadelo daqueles. Não havia entendido o motivo de termos discutido, e por sinal, nem queria lembrar, era tanta coisa na minha mente que só piorava se tentasse enfiar outras coisas. Eu poderia me desculpar com ele. Sabia disso. Michael aceitaria perfeitamente meu pedido de desculpas e voltaríamos a ser o mesmo casal de minutos atrás ou talvez não. Me virei na sua direção e percebi como ele estava encolhido, mas pela forma com que se movimentava tive certeza que estava acordado e não dormindo como queria passar a imagem. Cutuquei suas costas algumas vezes e nada. Até que finalmente desisti. Não tinha jeito.

Nunca tive experiência em namoro, nem mesmo tive paciência para suportar tanto tempo alguém ao meu lado que não fosse da minha família. Michael me suportou por tempo o bastante e acreditava que uma hora ou outra ele cansaria. Desistiria de mim e me mandaria embora daquele lugar por não aguentar mais ver a minha cara. Ele estava certo sobre isso. De não me suportar mais. Só que no fundo, eu não queria que ele fizesse nada disso. Queria apenas me manter em seus braços e nada mais.

- Michael. - Sussurrei o mais baixo possível. Era óbvio que ele não me escutaria. Mas ainda assim eu tentei.

- O que foi? - Tive resposta ao menos. Ele não se virou, o que só me deixou mais desanimada ainda.

- Me perdoa? - Perdoar pelo que? Por ser estúpida? Não tem conserto.

- Eu quem deveria estar pedindo desculpas, Melanie. Não respeitei seu momento. Reencontrar a sua mãe daquele jeito. Voltar pra casa sem as respostas que esperava. Eu que não te entendi. - Michael se sentou devagar e mesmo com eu deitada, pude sentir que ele me olhava. Suas mãos fortes me viraram e me fizeram ficar de frente para ele. Queria sorrir pela maneira com que ele tentava pedir desculpas ou até mesmo, por tentar fazer um carinho que fosse. Michael não estava acostumado com isso, e eu compreendia. Eu também não estava. Eu mesmo só havia descoberto algumas coisas sobre ter relacionamento com alguém agora, convivendo com Michael do meu lado, vivendo na mesma casa. Dividindo a mesma cama, as vezes comendo no mesmo prato e bebendo num único copo. Era coisas que eu só via quando meus pais estavam juntos e disfarçando muito. Não eram o típico casal de se abraçarem e beijarem 24 horas por dia, porque eles sabiam respeitar os filhos dentro de casa, e dar um bom exemplo. Mas agora, não sabia se isso valia.

- Ei. - Falei por entre os dentes trincados. Michael se projetou para frente e me deu a visão do seu rosto. Estendi toda preguiçosa meus braços até eles envolverem o pescoço de Michael e eu me forçar a levantar e sentar do seu lado. Tentei em vão cruzar as minhas pernas já que ele as puxou e as colocou sobre sua coxa. Não era a típica garota que dava carinho, mas quando acariciava o rosto frágil de Michael eu podia ver o quanto ele gostava. Parecia também não estar acostumado a isso, mas fechava os olhos a cada toque meu em seu rosto. A cada dedilhar em sua bochecha, maçã do rosto e contorno. Até eu de olhos fechados tentava decorar cada curva do rosto dele, e já havia marcado cada parte que eu mais gostava, e a que ele também.

- O que foi, pequena? - Havia dias que ele não me chamava assim e aquilo me derreteu. Aproximei meu rosto do seu e beijei seus lábios diversas vezes. Quando me afastei e olhei seus olhos, eles pareciam sorrir para mim.

- Eu te amo tanto, Michael Rose. Que seria impossível sentir algum tipo de ódio por um ser como você. - Ainda não havia dito nada daquilo. E até me estranhei ao terminar de dizer e ver Michael me encarando daquela forma. Peguei-o desprevenida, e eu sai de estúpida mais uma vez. Fui soltando-o aos poucos até poder me acomodar na cama e tentar dormir novamente. Não sei se peguei no sono ou se foi apenas um daqueles cochilos em que a gente escuta tudo ao nosso redor, mas senti o corpo quente de Michael me envolvendo, me beijando e sussurrando bem baixinho no meu ouvido, que também me amava muito.

* * *

Seria a segunda visita que os pais de Michael fariam na casa. Embora tudo fosse deles e eu estivesse sob a custódia de cada um deles, inclusive de Michael por ser o mais velho e o responsável por qualquer coisa que acontecesse comigo. A primeira vez em que tive algum tipo de contato com o senhor Marcus Rose. Seu rosto antes carismático e seu jeito risonho havia ido embora, tornando-se sério e sem nenhum tipo de assunto que envolvesse o problema principal: A caça. Enquanto Mônica tentava diversas vezes em que conversamos, agir como se fosse a minha mãe. Me protegia, dava conselhos, penteou meus cabelos um dia enquanto eu dormia mas logo despertei e ela logo, foi embora. Entendia seu lado. Seus filhos já eram grandes, e não estavam mais acostumados com carinhos, e eu era nova, sozinha, namorava seu filho, ela tinha que retribuir e passar o carinho que ainda tinha, para alguém. E não tinha problema algum nisso para mim, me sentia ótima, quebrava um pouco aquela situação ruim e constrangedora que era de viver presa. Enquanto os irmãos de Michael nem mesmo ligavam, mandavam cartas ou algum recado pelos pais que surgiam uma ou duas vezes no mês. Vita, Peter e Tae, eram indiferentes, viviam sua vida, sorte a deles.

Assim que a campainha tocou eu estava terminando de me vestir e pentear os cabelos, desci desesperada as escadas e esperei que eles entrassem, o que demorou um pouco. Eles pareciam analisar tudo ao redor e inclusive a mim, que estava com toda a certeza, mais vermelha que uma pimenta.

- Bom dia a vocês! - Tentei ser a carismática. Das outras vezes Michael estava já no meio de nós para puxar assunto, perguntar e tirar todas as dúvidas possíveis sobre o próximo passo. Só que desta vez ele resolveu me deixar tomar as rédeas sozinha, e eu me sentia mais tensa do que era no normal. Mônica foi a primeira a entrar e se acomodar no sofá, cruzando as pernas e olhando ao redor procurando com certeza pelo filho. Logo após veio Marcus, que apenas moveu a cabeça para mim, vestindo seu tipico jeans e um sobretudo preto e cumprido até o meio das pernas. Estava frio lá fora e eu sabia disso, mas dentro daquela casa era um forno, então nem me preocupei em vestir algo mais quente.

- E o Michael? Aonde ele esta? - Não demorou para que Michael surgisse abotoando sua camisa branca e passando as mãos no rosto esbranquiçado. Estava evidente que ele estava tomando um dos seus típicos banhos fumegantes. Por alguns segundos me veio a ideia de deixá-los sozinhos e inventar uma historia qualquer para que eles ficassem conversando e eu pudesse ir fazer qualquer outra coisa. Mas Michael logo envolveu os braços em torno do meu pescoço e depositando todo seu peso sobre mim. Odiava quando ele fazia isso, mas também adorava. Seu pai se aproximou dele e o olhou aparentemente decepcionado.

- Soube do episódio de ontem. Não estou muito contente com o resultado, não era bem o que tínhamos conversado, Michael. - Sabia que era sobre esse o motivo da vinda deles. Afinal, foi tudo ideia deles. Marcus tinha seus planos e não tomava uma atitude que fosse se não fosse iniciada pelo filho que era novo ainda. Quando soube da ideia deles de irem caçar me surpreendi ao saber que eu faria parte disso, e era a isca, e que Michael brigou desde o primeiro instante para que eu fizesse parte de tudo, mas não fosse a isca e a atingida. No final, fui atingida em cheio e super recebida pela minha ex mãe morta.

- Infelizmente as coisas não saíram como planejado. Como já era de se esperar. Ou melhor, não era de se esperar que eles já imaginassem que fôssemos caçá-los. - Ele não estava contando tudo. Olhei de lado o rosto de Michael e ele parecia estar acostumado a mentir. Mas pelo seus olhos, frios, sabia o motivo dele mentir. Por minha causa. Queria abraçá-lo por proteger a minha mãe, por me proteger.

- Se vocês me dão licença, vou fazer um café para vocês. - Disse. Entrando no meio dos dois e olhando para Mônica, que me acompanhou até a porta. Seu rosto estava mais pálido que o normal e mesmo com o cachecol em seu pescoço pude ver pequenas marcas arroxeadas em cada lado. Ela estava escondendo algo também, mas não tão bem.

- A senhora esta bem? - Mônica me olhou por algum tempo encostada no batente da porta e sorriu. Dava-se para notar o quanto aquele sorriso era falso. Aos poucos ela se aproximou de mim e me abraçou forte. Foi ai que eu estava sem entender mais nada.

- Eu estou bem, querida. Só quero te pedir um favor. Proteja o meu filho! - Foi uma das suas últimas palavras antes dela se afastar de mim e voltar para a sala. Engoli em seco, e tentei pensar no motivo de eu proteger Michael, afinal, ele fazia isso tão bem. Se auto proteger. Proteger outra pessoa totalmente insegura e não muito sã.

Logo após os pais de Michael irem embora, não demorou para que eu subisse para o quarto e tentasse relaxar um pouco que fosse a minha mente da ideia de que meu namorado estava correndo um grande perigo. Odiava quando as pessoas me causavam isso. Me deixavam ansiosa, com medo, e com aquela sensação terrível na boca do estômago que era incapaz de passar com uma noite de sono. Dormir só me deixaria mais irritada. Deitar só me fez rolar na cama diversas vezes e no fim, levantar e ir atrás de Michael na intenção de descobrir o que ele martelava tanto no galpão ao lado da casa. Ele parecia focado no que quer que estivesse fazendo e nem mesmo percebeu que eu estava bem ao seu lado, tanto que o susto foi grande o bastante para que ele se afastasse e com os olhos espantados, tentasse disfarçar se afastando e limpando o rosto na camisa que ele havia tirado. Estava frio demais para que ele estivesse daquele modo. Mas também não quis dar palpite algum, apenas toquei de leve no seu braço. Seu rosto se virou de uma vez e ainda com o martela em uma das mãos. Jurei que ele iria me bater ou faria qualquer outra coisa, mas apenas respirou fundo ao perceber quem era.

- Esta tudo bem com você? Esta frio. Vai ficar resfriado desse jeito. - Deixando a ferramenta de lado ele foi direto pegar a sua camisa e vesti-la. De costas pude ver o desenho perfeito e cada curva que antes eu mal tinha notado. Meio sem jeito apenas fui me afastando, e na esperança de fazer com que Michael entrasse pra casa, foi tudo tão em vão. Ele apenas voltou a fazer o que fazia, pegando um dos enormes pedaços de madeira que boa parte dos pregos que tinham nele estavam já tortos. Ele realmente não estava bem. - Vem comigo, Michael.

- Me deixa, Melanie. - Tentei novamente me aproximar. Michael mal me olhava nos olhos e quando me viu chegar perto apenas se afastou. O que mais me assustou foi ele pegar de uma única vez a madeira e jogá-la contra uma das paredes. O estrondo que causou não só me fez assustar como também me fez afastar o mais rápido possível. Não iria pressionar Michael também a falar o que quer que fosse, ele falaria no momento certo.
- Dá pra você me falar o que esta acontecendo? - Eu já havia visto Michael nervoso, e sabia bem como ele reagia mal em se expressar e dizer o que sentia. Já o vi jogar coisas, caçar a noite sozinho e até mesmo passar a noite em claro e só me dizer mesmo que aos poucos o que de fato estava acontecendo. Mais hoje. Agora. Era diferente. Rápido ele veio em minha direção e segurou meus ombros como meu pai sempre fazia com Beatrice. Não era uma coisa boa, mas ao menos dali debaixo eu podia ver os olhos fixos de Michael voltados para mim. Eles não brilhavam nem um pouco. Pareciam foscos, enquanto os meus continuavam a brilhar na mesma intensidade de antes, mesmo que eu não quisesse.
- Meus pais..ou melhor. O meu pai. Quer que você vá embora. - Pra mim a estocada maior veio logo em seguida. - E eu não vou poder ficar com você já que fiz meu papel.
- Mais como? Michael. Você...
- Eu sei. Eu também não quero. E é por isso que eu estou assim...me desculpe. Só que se eu não seguir as regras do "chefe", quem sofre as consequências é quem eu felizmente amo. - Devagar senti seus dedos pressionando os nós tensos dos meus ombros e foi deslizando até meu pescoço. Aquilo me fez encolher e fechar os olhos que estavam cheios de lágrimas numa hora dessa. Eu não poderia perder Michael também. Não mesmo. Já não me bastava tantos acontecimentos e agora perder algo do qual se tornou tão especial e essencial para mim. Mordisquei os lábios várias vezes e repetiria essa ação quantas vezes fosse necessário até vê-los sangrar, eu não me permitiria chorar. Não na frente de Michael. Não. Não. Não.

* * *
Arrumar as malas para ir embora seria trágico se eu não estivesse com a cabeça a mil. Michael me ajudou a todo o instante e agora eu tinha que abandoná-lo. Largar tudo e voltar pra minha vida medíocre e idiota. Me sentei na cama por um momento e repassei tudo o que aconteceu durante estes meses. Me perguntei se de fato Michael gostou de mim ou sentiu algo por mim. Afinal, ele não passou de um tutor para mim. Mais ao mesmo tempo se tornou um irmão, amigo e até namorado nas noites mais frias na cabana, caça e treinamento. Me encolhi o máximo que eu pude e me fixei no meu mundo que agora estava indo embora. Se não me bastasse perder um dos meus pilares que era a minha mãe, eu perderia outro? Eu desmoronaria totalmente e seria impossível reconstruir tudo novamente.

Quando a porta do quarto se abriu e Michael surgiu no quarto ele apenas suspirou. Seu rosto estava corado e os lábios num sorriso torto e ao mesmo tempo tão gentil. Eu conhecia aquele seu jeito. Ele tinha alguma ideia e agiria. E era isso que eu precisava. Que ele fizesse algo e não deixasse que nos separassem assim.
- Nós vamos embora. Vamos fugir. Vamos viver nossa vida fugindo ou qualquer coisa do tipo. Mas perder você vai ser demais pra mim. - Eu sabia que eu era um pequeno desastre na vida de Michael. Uma boneca de louça com pequenas rachaduras e abandonada num canto qualquer de um quarto um numa prateleira. Mas ele soube cuidar tão bem de mim e curar todas as feridas que meu coração se permitiu ter. Eu apenas me levantei rápido e corri em sua direção. Eu poderia me entregar para ele agora. Me tornar sua mulher. Mil planos voltaram para minha cabeça e palavras que eu poderia dizer vieram sem eu me conter. Eu queria amar aquele garoto. Ele me queria. E era apenas isso que interessava e nada mais.

Eu não me importaria em amar ele sendo outra garota. Tendo outro nome. Vivendo em outra cidade, país, em outra casa. Eu não me importaria em dizer que amaria ele em outra vida. O importante era que ele estivesse comigo. Do meu lado, me apoiando e me ajudando a passar por todas as barras possíveis. A partir daquela noite seriamos dois fugitivos. Seus pais me odiariam, ou melhor, seu pai e seus irmãos. Enquanto sua mãe se apaixonaria por mim ao saber que estaria cuidando do seu bem mais precioso. E que agora era meu também.


Naquela mesma noite nós juntamos tudo o que podíamos. Deixamos algumas roupas velhas já que Michael tinha a intenção de recomeçar bem longe daqui. Ele não me contou bem aonde iríamos e eu não me importava. O que interessava era a ideia de fugir. Estar na estrada, com ele. Tive a infeliz notícia de que teria que mudar. Desde meus modos até meus cabelos e o meu sotaque. Que ele jurava ser irresistível mais eu não sofreria tanto quanto ele. Paramos diversas vezes na estrada para comer e comprar os produtos necessários para as nossas mudanças. Ele jurava que seria difícil seus pais o encontrarem e até mesmo a minha mãe, que com certeza viria atrás de mim em busca de respostas ou de me atrair e transformar-me em um deles.

Me olhando no espelho sujo do hotel com aquela gosma com cheiro forte e descolorante nos cabelos eu não me reconhecia. Meu rosto estava diferente e mais magro. Minhas maçãs do rosto mais evidentes do que nunca, mas ainda assim eu me sentia bonita e Michael me achava atraente. Ele estava dormindo enquanto eu tentava me transformar numa outra garota que estudaria bem longe da sua antiga cidade e dos seus familiares. Michael tentou me dar dicas, mas não funcionou. Preferi que ele me surpreendesse. E como me surpreenderia.

Assim que tirei os produtos do cabelo, tomei um longo banho e vesti roupas que eram totalmente desconexas do meu mundo, ouvi Michael bater na porta do banheiro e pedir que eu saísse. Sabia que eu iria talvez assustá-lo, mas ainda assim eu sai. Primeiro eu vi seus olhos se arregalarem e em seguida seus passos em torno de mim. Ele me cercava como uma presa. Meus cabelos antes vermelhos feito fogo agora eram loiros quase platinados se não fosse as manchas teimosas de amarelo ovo. Minhas sobrancelhas se mantiveram no mesmo tom. Michael deu um jeito de comprar óculos sem grau para mim e de armações pequenas que ele jurava serem sensuais o bastante para ser considerada uma professora de um filme erótico. Aquilo me fez rir e ao mesmo tempo, corar. Estava com uma calça jeans super justa e de cintura baixa, coturno escuro e largo nos pés, além de uma camiseta polo branco e um casaco com touca por cima. Meus cabelos estavam secos já nesse meio tempo. Para quem antes preferia vestidos, saias e blusas largas, me sentia quase outra. Se não fosse por algo.
- Prazer...Rebecca.  - Falei. O mais rouco e lento possível. Michael sorriu mais malicioso possível para mim e me beijou.

Parte Dez - A Caça.

Poderia gritar. Sim, gritaria como todos faziam na quadra. Só que nada saia da minha garganta. Tentei engolir e passar a língua nos lábios mais parecia que qualquer movimento que eu fizesse seria o bastante para o monstro correr até mim. Michael ainda não havia percebido isso, e pelo meu leve movimento de cabeça, pude ver que ele havia conseguido falar com quem ele precisava. Eu estava sozinha. Deveria me virar pelo menos uma vez. Eu já havia feito isso uma vez, que mal teria eu fazer de novo? Me inclinei levemente e procurei no chão qualquer destroço, e a única coisa que tinha a minha frente era um pedaço grosso e pontudo do pé de uma das mesas. Com um dos pés o trouxe para perto de mim e fui andando devagar na direção do "colossal". Podia ouvir seus ruídos. Era quase como um ruído de dor, mais pelo seu sorriso fantasmagórico, ele não estava feliz. Estava com fome, e eu seria seu pequeno alimento caso não levasse a situação a sério. Vi algumas pessoas tentarem passar entre nós dois, e aquilo não era um empecilho muito grande. Na verdade só mostrava que o alvo daquele monstro era eu e mais ninguém. Pior seria matar algo tão grande, afinal, ele tinha as respostas que eu tanto precisava, e ele era mil vezes maior que eu.

- O que você quer? - Gritei. Minha voz era um pequeno assovio em meio a um monte de gritos e gemidos de dor. Além do cheiro terrível de morte e sangue que só se intensificava a cada passo que eu dava na direção do grande vampiro. Ele não respondeu. Mas também não perdeu tempo em correr na minha direção, tomar em impulso e saltar novamente sobre mim. Meu corpo em contato com o chão frio quis se encolher. Além do peso enorme daquele monstro totalmente sobre mim. Se não fosse o pedaço de pau ele teria me atacado, ele era a única forma de me separar entre sua boca enorme e cheia de dentes afiados, e de suas garras poderosas e sujas de sangue. Neste momento não havia maquiagem bonita e nem vestido perfeito, tudo se fora. A minha primeira noite, meu primeiro baile, foi embora. E não ficaria assim, porque também havia outros motivos. Michael gritou meu nome ao perceber aonde eu me encontrava. Eu não poderia responder a não ser continuar empurrando e sentindo vários respingos de saliva daquele grande monstro. Minhas pernas se arrastavam no chão na busca de escapar, e a única brecha que tive, me fez aproveitar de algo que jamais imaginei fazer. Segurar firme com uma das mãos e estocar sobre a pele escorregadia do vampiro. Que por sinal urrou, e na busca entre retirar a madeira de si e de me segurar, optou por si mesmo. Me dando a chance de correr para mais longe possível.

- Você é louca? - Michael gritou pra mim enquanto eu segurava sua mão e tentava arrastá-lo comigo para uma das portas. Eles haviam sido inteligentes o bastante para trancar cada uma das portas com cadeados e correntes grossas o bastante para ninguém conseguir forçar. Nem mesmo Michael conseguiu soltar nenhuma delas.

- Não sou louca. Meu Deus, a Beatrice. Cadê a minha irmã, Michael? - A ficha só havia caído que tinha pessoas ali que precisavam de mim quando olhei bem sobre a única faixa de luz a minha irmã caída no chão. Seu rosto estava pálido devido a luz da lua que sobressaia sobre sua pele. Além dos cabelos bagunçados e jogados no rosto. Ela estava morta. Ela também? Se não fosse Michael me segurando e me puxando contra seu corpo eu teria corrido até lá. Teria tentado salvá-la, ajudá-la ou qualquer coisa possível e que estivesse ao meu alcance.

- Você não pode voltar lá. A gente tem que ir embora. Ou melhor, achar uma saída. Meu pai vai resolver isso. Eu só preciso te proteger. Vem comigo!

- Mas Michael, é a minha irmã. - Quase me esguelei para que ele entendesse. Só que já era tarde. Vi o resto dos vidros da quadra se quebrarem e algumas pessoas adentrarem pelo vidro. Não dava para saber muito bem quem era. Estavam com trajes negros e bem adequados para o que vieram fazer. Seu rosto coberto e protegido por um tecido negro. Me lembravam ninjas, e ainda com suas espadas, armas brilhantes e até mesmo estacas para os menores vampiros, eu entendi qual eram seu papel. Aquele também deveria ser o meu. Um dos "ninjas" se aproximou com uma enorme tesoura, se é que se pode dar este o nome a algo que corte ferro, ou melhor, cadeados impenetráveis. Quando o ferro foi ao chão e a porta estava destrancada. Michael me arrastou com ele pelo corredor frio e vazio do colégio. Não sabia como seria a minha vida a partir daquele momento. Eu ainda estava assustada com isso, e ensanguentada pra variar. Além de alguns arranhões e etc. Mas não existia nada pior do que deixar parte da sua família para trás, inclusive alguém importante, embora as vezes parecesse desconhecido.

Michael me enfiou em um carro preto depois disso. Não era o que tínhamos vindo ao baile, só era maior, tinha cheiro de novo, e tinha mais alguém no banco de trás, que mais parecia um segurança, e não abriu a boca para dizer nada quando Michael pegou a direção e me enfiou no banco do passageiro. Parecia tudo combinado, e era assustador. Ele tomou a primeira via fora da cidade. Pensei comigo que estaria me levando pra casa mas não era isso. Quando ele passou reto pelo caminho que se acendia pra minha casa, percebi que estávamos indo para qualquer outro lugar, menos de volta pra minha vida. Não queria conversar queria apenas estapear Michael pela sua estupidez de pensar por mim. E na minha cabeça várias coisas passavam, cenas de conhecidos sendo mortos e sugados até o fim da sua vida. A da minha irmã debruçada no chão morta, e as palavras de Michael anunciando que iria me proteger. Como ele iria me proteger da minha própria vida?

Acho que dormi boa parte do caminho, já que acordei e me encontrei deitada sobre um cama macia e quentinha. Minhas roupas haviam sido trocadas e meu cabelo escovado, já que não havia mais nenhum nó ou cacho feito antes. Fui me levantar de mansinho mais algo me dizia que deveria permanecer ali, só que era inevitável. O quarto em que me encontrava era pequeno. Suas paredes de madeira me lembravam os filmes antigos. Tinha cheiro de mofo e pinicava o meu nariz, mas ainda assim era aconchegante e quente. Procurei a porta em meio a escuridão e sai pelo pequeno corredor que me dava direto para a cozinha. Michael não estava lá, nem mesmo o segurança. Eles poderiam ter me abandonado ali, o que era bom. Assim poderia fugir o mais rápido possível, embora soubesse que estava já bem longe de Preciosa. Encontrei a direção certa que dava para a sala. E Michael estava dormindo no sofá listrado e coberto por uma manta fina, mas esta era uma das menores preocupações. Em seu rosto havia uma pequena cicatriz. Parecia um corte fundo e o sangue havia cessado a pouco tempo. Fui me aproximando aos poucos até estar de frente a ele. Quis tocar a região mais pela pequena careta feita por Michael mesmo adormecido, mostrava que ainda doía.

- Deveria estar dormindo. Precisa descansar. - Sua voz estava sonolenta. Mais mole do que nunca e isso me fez estranhá-lo. Sua voz era sempre dura e direta. Seus olhos eram a única coisa encontrada igual a noite passada. Brilhantes e que me penetravam profundamente.

- Acho que perdi o sono. - Sussurrei. Michael foi se sentando aos poucos e passou os dedos pelo pouco de cabelo que tinha na cabeça recém raspada. Sua boca estava mais corada que nunca, assim como sua bochecha e abaixo dos olhos, tinha um vermelho bonito.

- Eu entendo. Acredito que terá longos pesadelos a partir de agora.

- Sei lidar com isso, Michael. Lembra que encontrei o braço da minha mãe? - Protestei. Fui me levantando do chão até me sentar ao lado dele. Ele pareceu não se importar muito, tanto que me deu espaço.

- Tinha me esquecido deste pequeno detalhe.

- Pois eu não. - Puxei o cobertor que estava sobre ele para mim. Juntei bem as pernas sobre o sofá e as abracei até me sentir quente o suficiente. - Que horas são afinal?

Michael procurou o celular num dos bolsos da calça e quando o encontrou, pareceu assustado.

- São 04:30 da manhã. As horas passam rápido. - Concordei. Numa hora destas papai já sabia do acontecido, e imaginava que a sua filha querida havia sido morta, exatamente como a mais velha. Só que não era bem assim. Eu estava viva, viva até demais.  - Acho melhor tentar voltar a dormir. Precisa descansar um pouco. Amanhã quero te ensinar algumas coisas, e inclusive, te dar algo. - Revirei os olhos com a forma com que ele tentava me dizer. Foi engraçado, mas odiava me sentir curiosa, e ele estava conseguindo isso.

- Não devia fazer isso comigo, sabia? Odeio dormir com o estômago doendo de tanta ansiedade.

- Como eu sei que você sofre de ansiedade, é por ai mesmo que eu provoco. - Ele sorriu depois de tanto tempo. E pegou um pedaço do cobertor e jogou sobre si. Era estranho ter ele assim do meu lado. Dividindo o mesmo sofá, o mesmo cobertor, o mesmo ar. O mesmo momento. Quis olhar para ele mais acabei encontrando-o já me observando. Seu sorriso ainda estava lá, intacto. Mais logo seria quebrado por um beijo que eu daria, embora o momento não fosse apropriado.

* * *

Acordei com o som de algo sendo cerrado bem debaixo da minha janela. Era incomodo e mesmo eu tentando cobrir a minha cabeça, parecia proposital, só ficava mais intenso. Quando resolvi sair da cama, cheguei a voltar e olhar o que tinha sobre uma das poltronas do quarto. Era algumas peças de roupa e inclusive um par de coturno e uma galocha preta e que aparentemente, encostaria no meu joelho. Suspirei em imaginar que era tudo pra mim. Apenas optei em perguntar antes de ir colocando-a. Fui direto para a cozinha onde encontrei uma mesa posta com ovos mexidos e ainda quentes, suco de laranja fresco, frutas diversas e um bolo inteiro de chocolate posto bem ao centro. A minha barriga chegou a roncar me imaginando degustar de algo que fazia um bom tempo que não experimentava. Me fez lembrar do quanto Sara gostava de fazer e ver todos em casa felizes por suas tentativas. Ela não gostava de cozinhar, mais era perfeita quando o assunto era bolo e doces.

Me acomodei numa das cadeiras e suspirei ao lembrar novamente da minha irmã. Torcia para que ela ainda estivesse viva. Mas em um momento daqueles, eu deveria pensar em qualquer outra coisa a não ser no que houve na noite passada. Meus dedos chegavam a formigar em me ver impossibilitada de matar algo tão grande. Me sentia um grão de areia próximo a um vampiro tão forte e gigantesco. Meu estômago se revirou ao lembrar do cheiro doce de sangue. Era algo familiar, era quase como um perfume, um aroma. Sara. Me levantei rápido, antes de derrubar uma das cadeiras e com os passos rápidos ir voltando para trás. Meu corpo se encostou em algo quente e que se movia. Me virei devagar e encontrei Michael, assustado e com um sorriso meio preguiçoso no canto da boca. Queria estapeá-lo, inclusive por me deixar ali.

- O que aconteceu? - Sua voz era mansa, assim como sua maneira de abaixar e pegar a cadeira me fez refletir se ele estava de fato pensando o quão perigoso era se manter daquele jeito, logo comigo. Tão nervosa, queria matá-lo.

- Eu me lembrei de algumas coisas. O cheiro.

- Que cheiro? - Olhei em volta de mim e suspirei. Era idiotice minha querer me explicar para Michael, ele jamais entenderia.

- O cheiro doce. De ferro.

- Quer dizer o sangue? - Dei de ombros e fui saindo da cozinha devagar. Precisava subir para o quarto, colocar algo nos pés e tentar ir embora. Não poderia ficar ali mais. Não com Michael levando na brincadeira tudo. - Quer voltar aqui e me explicar o que esta acontecendo?

Sem pressa ele me segurou por um dos braços e me fez virar. Ele realmente estava sem entender o que houve.

- Ontem estava tudo normal. Você aceitando tudo tranquilamente e de repente, você acorda toda nervosa e desconta em mim? - Suas sobrancelhas numa hora daquelas estavam juntas assim como os lábios retos. Ele estava nervoso, e eu entendia seu lado.

- Me desculpe. Eu só estou desesperada. Eu me lembrei do cheiro de sangue. Porque dele ser tão familiar. Era o cheiro que Sara tinha, e embora eu fosse pequena o bastante, eu posso reconhecer agora.

- Mas porque ela cheiraria a sangue, Melanie? - Revirei os olhos.

- Eu não sei. Estava levando em consideração da minha própria mãe ser uma vampira.

- Eu acredito que ela não seja. Caso contrário, estaria no seu sangue. Você seria uma. E eu poderia facilmente reconhecer.

- Não sei nem o porque de eu estar falando isso com você. É uma hipótese idiota. Preciso tomar um banho. - Fui direto para o quarto. Juntei as roupas selecionadas sobre a poltrona e as apertei contra meu corpo. O cheiro era gostoso, cheiro de roupa limpa e nova. Michael ficou o tempo todo parado na porta do quarto me observando ainda sério.

- Toma um banho, toma o café da manhã em seguida. A gente vai dar uma volta depois. - Concordei.

- Eu não vou ficar aqui pra sempre. Acha que fugir é a melhor opção, Michael? - Disse. Me aproximando de Michael que apenas mudou de postura e respirou bem fundo. Seus olhos se mantiveram fixos no meu até que eu estivesse a apenas alguns centímetros do seu corpo.

- Sei disso mais do que ninguém. A gente não vai permanecer aqui. Vou te levar pra outro lugar. Te trouxe aqui mais na intenção de te ver descansar e te ensinar algumas coisas que são necessárias para que você saiba sobreviver e ter uma vida normal, longe de Preciosa.

- Quer dizer que você esta tirando de mim tudo o que me resta? - Numa hora destas meus olhos já estavam cheios de lágrima. A imagem turva de Michael estava a um palmo de mim e a única coisa que eu consegui foi me abaixar e chorar. Era um choro guardado, cheio de ruídos e soluços. Deixei as roupas para longe de mim e Michael em minutos se abaixou e me segurou pelos ombros.

- Sei que não é fácil. E não vai ser. A vida não foi feita pra ser assim, Melanie. Uma hora ou outra isso tudo aconteceria e você teria que fazer a mesma decisão que eu estou tomando por você.

- Mas quem é você pra tomar as decisões pra minha vida? Um garoto de dezessete anos, fuma, bebe, dirige perigosamente uma moto, que mente e ainda por cima, leva pra longe uma garota sem que ela saiba como esta seu pai, irmão ou irmã? Se toca, Michael. As coisas não vão ser como você quer.

- Você não tem escolha a não ser ficar. Eu já te disse que vou fazer as coisas serem fáceis, que eu vou te ajudar com tudo o que for preciso. Mas você tem que confiar em mim. Depois deixo você voltar pra sua vida, comigo nela ou não. - Mesmo eu alterando a voz, Michael permaneceu como se meus gritos não fosse nada pra ele. Nem meu choro que havia sido cessado a poucos segundos. Limpei meus olhos e rosto e encarei duramente o rosto do garoto a minha frente. Ele retirou algumas mexas do meu rosto e limpou o restante de lágrimas da minha bochecha. - Me desculpe, Melanie.

Me ergui com pressa e peguei as roupas do chão, fui em busca do banheiro do qual bati a porta com tudo, e só sairia de lá quando tivesse caído a ficha e teria a decisão correta nas minhas mãos.

As roupas selecionadas para que eu vestisse naquele dia eram de fato quentes e confortáveis. O tempo lá fora estava nublado e boa parte da manhã eu vi chuviscar bem de leve, e logo cessar. Tomei meu café da manhã sozinha e estive na sala ainda quieta esperando apenas Michael aparecer e trazer com ele seu longo sermão do que era certo pra mim. Vendo por este lado eu percebia que ele tinha muito a esconder, e seria difícil descobrir o que ele deixava para trás. Seus olhos e a forma com que escondia as coisas ao invés de esclarecer tudo me deixava confusa e ao mesmo tempo, atraída em querer estar mais perto dele e saber o que de fato ele era e fazia.

A porta da sala se abriu e eu logo fui chamada por Michael. Ajeitei a jaqueta sobre a regata preta assim como toda as peças. Meu coturno fazia um barulho engraçado em contato com o chão de madeira, e só se intensificou quando finalmente pude ver o que me cercava. Nós não tínhamos varanda como toda casa normal. Não era uma casa comum, era uma cabana toda de madeira e cercada por muitas árvores. Era quase impossível de se perceber que vivia gente ali. E nem mesmo estrada para que algum automóvel pudesse passar existia. Era tudo tão misterioso que só me deixava mais curiosa. Michael me levou por uma pequena trilha que se erguia em direção a mata mais fechada. A pouca iluminação e a grande umidade fez com que eu sentisse ainda mais frio. Michael pareceu nem mesmo se importar com a temperatura, já que estava com uma roupa comum. Calça jeans, coturno e uma jaqueta escura e fechada. Seu rosto estava sombrio após a conversa que tivemos hoje mais cedo. Até entendia, ele não era acostumado com crises femininas. E pela quantidade de homens na sua família, poderia considerar normal.

- É aqui. - Ele parou e eu quase trombei com um dos troncos cortados sobre um punhado de folha secas. Olhei em minha volta e não via nada demais. A não ser árvores e mais árvores. Folhas secas e o ruído bem afastado dos pássaros que procuravam algum ponto para se aninharem.

- O que a gente vai fazer? - Cruzei os braços e observei Michael retirar de trás de uma das árvores uma mochila preta bem grande e aparentemente pesada. Abriu do zíper e se abaixou. Vi ele retirar algumas armas. De diversos tipos e tamanhos, mais em principal o que mais me chamou a atenção foi uma katana. Ela ainda estava na sua bainha até Michael perceber que a minha atenção estava mais voltada a ela. Pude ver o brilho da sua lâmina perfeitamente curvada e lustrosa. Parecia bem afiada e pesada, ainda mais para uma garota. Só havia visto uma de perto uma única vez e havia sido na loja do meu pai, ele nunca havia deixado nem mesmo Beatrice colocar seus dedos curiosos nela. Era sempre possível vê-lo limpá-la e cuidar dela como seu bem mais precioso.

- Bonita não é mesmo? - Pelo jeito Michael tinha jeito com diversas coisas. Sua postura havia mudado e se tornado mais dura, levemente inclinada e parecia me desafiar. - Vamos fazer o seguinte. Eu deixo você ficar com ela se me mostrar toda a raiva que você tem ai dentro. - Com um movimento de cabeça ele apontou na minha direção. Quis rir. O que ele queria dizer?

- Raiva? Que raiva? - Michael correu na minha direção, jogando a katana em um dos lados do corpo e vindo sem nada. Apenas com toda a força do corpo ele se jogou contra mim e me derrubou.

Ouvi todos os ossos possíveis do meu corpo se estalar e só ficava pior a cada minuto em que tinha todo aquele peso sobre mim. Era uma sensação esmagadora e sufocava intensamente. No fundo eu sabia que ficar ali de olhos fechados esperando Michael sair de cima de mim não adiantaria muito. Precisava tomar uma atitude e foi o que de fato fiz. Busquei toda a minha força lá do fundo para poder empurrar Michael para o lado e então eu ficar por cima. Ele parecia assustado quando me viu segurando seus braços contra o chão de folhas e inclusive, com o leve rosnar que saia dos meus lábios. Até eu me assustei ao perceber que não era de animal nenhum em torno da gente e sim de mim. Fui soltando-o devagar e tentando sair de cima do seu corpo, mas quem não permitiu isso foi ele.

- Você viu isso? - Ergui uma das sobrancelhas e o olhei ainda mais espantada. Michael apenas pegou o celular e mesmo que sem eu permitisse ou esperasse, ele me fotografou. Soube disso pelo som que produziu, e quando ele me mostrou a foto até eu me assustei. Meus olhos já não eram mais marrom claro, haviam sido substituídos por um tom vermelho forte e brilhava. Talvez fosse o flash da câmera, mas ele continuava a me encarar, até que ele tocou a lateral do meu rosto, bem abaixo dos olhos. - Você é uma caixinha de surpresa.

Deveria sorrir em ouvir isso, mas não o fiz apenas dei de ombros e fui me levantando.

Durante todo o resto da semana havia sido assim. Ele me ensinou a usar as arma branca, pistola, facões, a tão famosa katana e até mesmo uma besta que ele havia encontrado no porão daquela casa. Não me explicou em momento algum por qual motivo queria tanto me treinar. Apenas dizia o seguinte:

- Você é uma arma. E pode usar isso contra aqueles que te separaram da sua família.

Era uma frase um tanto egoísta afinal, via nos olhos de Michael cada vez que eu acertava um dos seus golpes e até mesmo o atingia em cheio com toda a minha força, de que ele estava me treinando para o seu bem. Não exatamente para mim mesmo ou para o meu futuro. É claro que poderia virar o jogo, usar para o meu dever e para muitos outros, e agradeceria no final disso tudo a Michael, por ter me mostrado como as coisas realmente funcionam.

* * *

Foram exatamente dois ou três meses sendo treinada por Michael, não era algo bom e nem mesmo ruim estar longe de toda a minha antiga vida. No fim havia aprendido muita coisa e me tornado uma mulher que eu deveria ter sido desde o começo. Michael só me mostrou as verdades que antes estavam todas incubadas, e agora, estavam mais visíveis aos meus olhos do que nunca.

Estava deitada naquele comece de noite. Foi um dia como qualquer outro.Treinei com Michael, almoçamos e descansarmos o resto do dia até que a noite fôssemos andar por ai sem destino e voltar para casa seria uma tarefa ainda maior. Quando digo "andar sem destino", acredite. Ela tem mais sentido do que você imagina. Michael estava me ensinando a encontrar vampiros. Sim, agora eles tinham um nome pra mim, e não apenas sugadores ou seres da noite. Pior ainda foi perceber que havia mais vampiros entre a gente do que eu mesmo imaginava. E que os livros nos enganavam, nem tudo descrito é exatamente igual, era tudo tão diferente e que só me fascinava a cada caçada.

Me levantei rápido e fui em busca das minhas roupas para a noite. Vesti meu jeans velho e agora rasgado e gasto, meu coturno, regata e casaco. Prendi meus cabelos de forma que meu rosto todo ficasse visível. Incrível como se encontrar te deixava mais bonita, até o tom avermelhado dos meus cabelos tinham se intensificado e ficado ainda mais bonito. Até Michael havia percebido isso. Seus elogios estavam se tornando ainda mais frequentes, menos seus beijos é claro, que por sinal, ele só fugia. Mas tentei não me importar, achava que era parte do seu papel e também não iria forçá-lo a uma situação constrangedora.

Fui direto para a sala onde Michael não estava, mas pela porta aberta sabia que ele estava lá fora ajeitando os últimos detalhes para a nossa última saída noturna em busca de respostas. Ele conseguiu colocar todas as armas de forma que fossem encontradas em cada espaço do carro. Inclusive a katana, que como ele mesmo costumava dizer, era a minha arma e eu não saberia usar nenhuma outra a não ser que usasse meu corpo. Ainda tinha cada um dos hematomas causados em nossas lutinhas na mata, e ele também, trazia uma mancha roxa bem na lateral do rosto ao tentar desviar de um soco meu, levando consigo mais dois chutes. Nós éramos o tipo de casal perigo. Talvez um Senhor e Senhora Smith?


Estávamos pegando a via que dava de volta para Preciosa. Michael tinha certeza que os últimos pontos em que ele mesmo fez questão de anotar, batia com o lugar em que deveríamos chegar. Não era perto de casa, como também não era longe dela, assim como eles tinham fácil acesso a cidade e as pessoas, o que era uma grande chance e vantagem para os próprios vampiros. A nossa intenção era ir, buscar a caixa, respostas e voltar sem se quer que uma gota caísse ao chão, se daria certo ou não, eu não fazia ideia, mais valeria a pena tentar e ver quem era o mandante da minha morte.  Não era exatamente uma casa que estávamos parados observando a distancia e sim uma antiga fabrica abandonada no meio de um monte de mato e uma única estrada que dava para a rua principal do centro da cidade de Preciosa. Sua base era de um ferro enferrujado e pelo pouco que percebi, haviam tentado reformar o lugar e cobrir qualquer resquício de iluminação que vinha de fora. Mais era uma armação tão ridículo que chegava a ser cômica, tanto que nem mesmo Michael sabia que seria tão fácil assim.
- Não acha que pode ser uma armadilha? - Sussurrei. Ajeitando uma das mechas crespas do meu cabelo por de trás da orelha. Michael encheu os bolsos da calça com as balas da sua arma e me olhou. Sua barba estava por fazer, inclusive na região do queijo e buço. Ele ficava mais homem daquele jeito, quebrava um pouco aquela imagem de moleque que ele sempre deixou quando o vi pela primeira vez. É claro que após as nossas últimas descobertas, ele havia se transformado comigo, me tratando séria e levando tudo a sério demais, a ponto de ser ridículo.
- Eu acredito que não. Qualquer coisa, você sabe o que fazer. Você vai embora, corre de volta ou procura algum lugar pra se proteger. Mas acho que não será necessário. - Revirei os olhos e fui abrindo a porta do carro. As luzes do carro estavam apagadas, e estava começando a escurecer, o que era um ponto fortíssimo. Ainda nos dava a visão do lugar certo aonde deveríamos pisar e o que nos cercava. Michael veio logo após mim e caminhando devagar do meu lado, fomos caminhando até a fabrica. A katana estava firme em minhas mãos, que por sinal estavam frias e tremiam de nervosismo do que eu podia encontrar.

Era engraçada a sensação do seu coração pulsar mais rápido do que todo o resto de veias e sangue no seu corpo. Era um músculo consideravelmente grande, e que nos trazia um problema e tanto, e naquele instante ele era um problema pra mim. Havia aprendido a me controlar, a pulsação era sentida por eles, e eu era uma completa idiota de sentir tanto nervosismo numa hora daquelas após caçar por dois meses seguidos. Procurei respirar fundo, encontrar o ar a minha volta, mas a cada passo só se intensificava.
- Fica tranquila, Mel. Vai dar tudo certo. Lembre-se, raiva. - Raiva havia sido a palavra que tinha mais escutado durante este tempo. Michael queria que eu sentisse toda a raiva guardada por mim e pela minha mãe que havia morrido por conta daqueles seres idiotas. Foi naquele momento em que todo meu corpo se aqueceu. Meus olhos se acenderam e meus passos ficaram mais rápidos. De frente com aquela enorme porta de ferro, um único chute foi o bastante para destrancá-la e ir invadindo o mais rápido possível. Michael foi logo em seguida pelas laterais e eu direto pela frente, retirando da Saya a minha katana e deixando a lâmina parada bem no meio do meu corpo. Ok que estar naquela posição me tirava toda a visão a minha volta. Era grande demais e escuro demais, e a única coisa que eu sentia era a presença de outros ali. O cheiro forte de sangue já não era problema pra mim, até que uma das luzes se acendeu, fraca mais ainda assim presente, e uma mulher de cabelos pretos vinha na minha direção. Sua pele era extremamente branca e iluminada, só se intensificava. Quando ela me encarou eu reconheci na mesma hora.
- Mãe? - Gritei. Deixando a katana que antes estava segura entre meus dedos, ir direto ao chão. Seu sorriso era o mesmo, mas tinha algo diferente nela. Era desesperador, e ao mesmo tempo, não era o mesmo sorriso que eu via todas as manhãs, tinha algo a mais. E eu não sabia decifrar, não mais.

Parte Nove - Não me acorde

Naquele momento eu vi muitas coisas que se eu fosse listar cada uma delas, iria preencher um caderno todo, inclusive o que estava parado bem na minha frente, que tinha nome, cor de cabelo e muita oxigenada. Era Jennifer. Seu rosto antes branco estava vermelho feito uma pimenta, seus punhos fechados e a boca se contorcendo de ódio até não poder mais. Parecia que ela iria estourar a qualquer minuto ou pior, voaria em cima de mim e me mataria.

- Do que esta falando garota? - Michael foi o primeiro a tomar as rédeas, se levantando e ajeitando suas roupas, enquanto eu, me mantive quieta no banco, agora frio e constrangedor.

- Eu estou falando do que você esta fazendo com essa garota, Michael. A gente tava tão feliz junto poxa!! - Sua voz se tornou mais indecente ainda, e aquilo me causava ânsia de vômito. Como ela poderia? Ou melhor, eles poderiam? Não soube naquele momento se olhava fixo em Michael, que estava descontente com toda a situação, ou com Jennifer que começou a dar alguns passos e se lançou no corpo dele.

- Eu não me lembro de ter tido alguma coisa com você. Pode até ter sido no seu sonho, mas na realidade, nem me lembro da sua existência. - Algo impossível e uma mentira só. Quem não conhecia Jennifer? Até eu mesmo que havia acabado de entrar no colégio tive a infelicidade. E Michael? O garoto mais popular e bonito de Preciosa? Suspirei fundo e fui me levantando. Não poderia fazer parte daquela cena e nem do circo todo. Passei a mão por minha saia e ajeitei meus cabelos e fui em direção a fonte. Já havia alguns alunos, e boa parte delas eram meninas e observavam a situação de longe, doidas para contarem pela cidade toda que Melanie Silver estava pegando o namorado de Jennifer, a garota mais bonita do colégio. Queria gritar com cada um que me olhava e fazia sua pior careta.  Mas era melhor me silenciar e me encolher em qualquer canto a ter que ouvir coisas que não era obrigada. Deste lado, bem neste aonde me encontro. Com as pernas encostadas no concreto frio que cercava a fonte e era uma proteção quanto a quedas, eu tinha a visão exata do casal. Michael estava falando tranquilamente com Jennifer, que criava um escândalo todo para chamar a atenção e visivelmente, ser a frágil garota traída. Me sentia mal por outros motivos. Por ter perdido uma mãe recentemente. Por ser alvo de morte de caras que nem sabia se eram humanos mesmo, mas que me queriam morta de qualquer forma. Tinha ganhado forças que eu mesmo não imaginava, e até lutar eu havia conseguido, tudo sozinha. E neste momento, tinha mais um item a ser adicionado. Um coração partido por um completo idiota.

Fui a última a descer do ônibus para não receber cutucões e muito menos ouvir palavrões desnecessários de gente desnecessária. O frio na cidade estava me causando uma tremenda dor de cabeça. Claro, não era só o frio. Desde pequena aprendi a amar o frio e a conviver com ele todos os dias. Embora a minha antiga cidade não fosse sempre dominada por camadas imensas de gelo, e muito menos com visões cinematográficas de crianças fazendo monstros de neves, anjos ou jogando bolinha um nos outros. Ajeitei melhor meu casaco e fui me enfiando no que se dizia meu colégio. Precisava fazer pequenas coisas.

- Pegar a minha mochila.

- Guardar meus livros.

- Pegar meu cachecol e avisar Beatrice que esperaria ela na cafeteria de esquina com o colégio.

Certo que eu poderia avisá-la por celular, mas ainda assim fui na sua sala e dei o recado pela professora, que revirou os olhos e deu de ombros. Não sabia se ela daria o recado pra minha irmã. Mas ainda assim fui saindo da escola a caminho da cafeteria. Era a poucos metros da escola, era quente e eu poderia ficar em paz afinal, tinha anotações a ser feitas e um cara tosco pra ser esquecido.

Logo que me mudei para Preciosa, mamãe havia me dito que o leite com café daquela espelunca era delicioso. Tinha minhas dúvidas quando a vi experimentar pela primeira vez e fazer uma careta terrível. Olhei o cardápio inteiro e a única coisa que pude pedir foi bacon bem queimado, ovos mexidos e uma xícara bem grande e quente com chá de hortelã e limão. Não era a minha mistura preferida, mais quem se importa? Peguei meu caderno mais velho e uma caneta para que pudesse iniciar as minhas anotações. Não era muita coisa, mais seria importante caso quisesse resolver as questões da minha vida, e com as declarações de Michael, as coisas só ficaram mais confusas e distorcidas pra mim.  Só que iria fazer um bem danado que eu anotasse cada uma das coisas que ele havia me dito. E lá me vem ele na cabeça. Aqueles olhos grandes e brilhantes na minha direção, suas sobrancelhas grossas e expressivas assim como seus lábios. Peguei devagar a xícara fumegante que fora entregue na minha mesa, e devagar tentei dar uma golada. Estava de fato quente, a ponto do líquido que deslizava pela minha garganta queimar e borbulhar bem lá no fundo de mim. Quis rir, mas a mesma quentura que sentia naquele momento, senti quando Michael me beijou pela primeira vez. Era quente, macio e reconfortante.

* * *

Beatrice se encontrou comigo na cafeteria e pra minha surpresa, não estava apressada para ir pra casa, pelo contrário, fez seu pedido e se alojou comigo na mesma mesa. Era difícil nós fazermos um programa de irmãs, já que éramos tão afastadas uma das outras, mas ela parecia querer se aproximar de mim e eu entendia o motivo, era os acontecidos.

- O que foi? - Ela sussurrou enquanto sua caneca grande com café e muito creme era deixada sobre a mesa. Seus olhos estavam maquiados como sempre, assim como seus cabelos estavam lisos e vivos como a garota em que convivia.

- Nada. Só to te observando. - Dei de ombros. Ajeitando a mochila sobre meus ombros. Boa parte dos alunos já estavam chegando na cafeteria, o que era um bom e ruim sinal. Deixava bem claro quem eu encontraria, e era exatamente de quem eu estava fugindo.

- Fazia um tempo que não tomava um café tão bom.

- Claro, se você ou o papai soubessem fazer um café descente, não seria obrigada a pagar por um. - Beatrice riu, dando mais uma longa golada no seu café e mexendo na bolsa em seguida, em busca de algo. Quando encontrou, deslizou sobre a minha direção. Era um colar pequeno, mais não era estranho para mim. - O que é isso?

- É pra você. A mamãe havia me dado logo em que resolveu sair da nossa cidade e vir pra cá. Mas eu o "aceitei" sem ver necessidade. Ele combina mais com você. - Peguei a corrente e ajeitei entre meus dedos. Ela era fria em contato com a minha pele, e tinha um pingente em sua ponta, delicado e em formato de um coração simplório. Na verdade era um camafel dos mais delicados que eu já havia pego. Todo trabalho em seus detalhes e com uma única pedra vermelha ao centro. Tentei abri-lo, mas foi uma tentativa totalmente fracassada. - Eu sei, ele não abre. Eu tentei já e não consegui. Mas acredito que uma hora ou outra, ele irá abrir. Ele está nas mãos certas.

Beatrice foi tirando o dinheiro do bolso e pagando seu café, rapidamente foi se erguendo e se encaminhando a saída da cafeteria. Tive de me apressar para acompanhá-la. Por sorte sua caminhonete estava estacionada bem na frente da cafeteria e não perdi muito tempo em entrar nela e me acomodar no banco de passageiro.

- O que você quer dizer com "nas mãos certas"?

- Quis dizer que ele não pertencia a mim. Caso contrário, ele teria se aberto para mim e isso não aconteceu. Vou te dar um tempo e logo vai entender o que quero dizer, Melanie.

- Mas...

- Tudo tem seu tempo. - E foi logo ligando a caminhonete e tomando partido na direção de casa. Era estupidez minha continuar tentando prolongar a minha conversa com ela. Não ouviria as respostas que queria, e pelo jeito em que Beatrice era, seria uma tarefa difícil.

Logo que chegamos em casa, corri escada acima até meu quarto. Papai havia conseguido outra cama para mim mas ainda assim sentia meu quarto vazio e diferente do que eu havia conseguido montar em tão pouco tempo. As paredes pareciam encardidas, e o cheiro adocicado revirava meu estômago de todas as formas possíveis. Era nauseante e impregnado em todos os cantos do meu quarto me deixava perdida. Joguei a mochila em um dos cantos e me sentei no colchão velho da minha cama. Tive tempo de respirar fundo várias vezes em busca de um ar diferente, mas tudo era igual, até que meu celular começou a tocar. Embora a chamada fosse não identificada, eu soube quem era, era Michael. E eu não atenderia de forma alguma caso ele quisesse se explicar. Durante três vezes ele tentou, até que alguém bateu na porta do meu quarto e meu irmão entrou em disparada. Seu rosto estava corado feito uma bola de fogo, assim como seus cabelos, e pela sua boca arreganhada e com falta de dentes, ele vinha com novidades.

- Mel. Tem um cara te chamando lá na sala. - Só havia reparado agora como Michael era insistente e irritante. Queria socá-lo até desfigurar seu rosto bonitinho, já que eu tinha toda aquela força eu poderia usá-la contra a todos, inclusive a ele. Mordisquei o lábio e pensei duas vezes antes de me levantar e esfregar os cabelos de Pedro até ouvir ele reclamar. Fui descendo sem tentar criar ruídos, mas Michael era esperto e sabia que eu estava ali, e soube disso ao perceber que ele me esperava no final da escada com os braços cruzados. Seus olhos estavam arregalados, e não soube decifrar se era de surpresa ou espanto de me ver descendo as escadas em seu encontro.

- A gente precisa conversar.

- Não, a gente não tem nada pra conversar. E se puder ir embora e fechar a merda da porta eu agradeceria muito. - Fui subindo as escadas de volta quando ouvi seus passos apressados e que me acompanhavam. Suas duas mãos enormes seguravam firme meus braços e ele rapidamente me encostou na parede que dava para o corredor dos quartos. Pude ver melhor seu rosto. Michael estava assustado mais ainda assim teve tempo de sorrir e encarar firmemente meus lábios, que se encontravam uma linha reta. Não era de surpresa. Ok, era um pouco sim de surpresa por não imaginar que o encontraria ali e que seria capaz de me encarar ainda depois do que houve. Suspirei fundo, até ver a minha irmã surgindo no corredor e me olhar ainda mais assustada em me encontrar naquela situação. Aposto que se fosse meu pai ele espancaria Michael até ele aprender a lição, e eu adoraria assistir, mas Beatrice apenas sorriu sem jeito e foi voltando pro quarto como se nada tivesse acontecido. Voltei meus olhos para Michael que mexeu as sobrancelhas para mim a espera que eu falasse qualquer coisa, mas nada saiu. Apenas segurei em seu pulso e o arrastei para o meu quarto do qual bati a porta e tranquei.
- Quero te explicar algumas coisas. - Michael foi logo se aproximando de mim ao perceber o cômodo vazio e espaçoso, recuei no mesmo instante e me acomodei na cama, mas pareceu um convite que ele logo aceitou.
- Não temos nada pra conversar eu já te disse isso. E seria mais cômodo se me deixasse em paz. - Sussurrei. Era doloroso dizer aquelas coisas. Querer que alguém se afastasse de você. No fundo seu coração pede por respostas. Por ouvir qualquer coisa que fosse sair da boca daquela pessoa que você gosta, ou acha que ama. É uma luta e tanto.
- Temos sim. Olha. Por favor, me escuta. Você também não pode me afastar deste jeito, você meio que precisa de mim.
- Não preciso. Como nunca precisei. Estou viva até agora e te conheci a pouquíssimos meses. Como posso depender de você? - Dependia sim. Era um ciclo vicioso. Michael se silenciou por um tempo e assim como eu, foi se arrastando na cama até estar com as costas contra a parede e todo o corpo esticado na cama. Parecíamos dois idiotas em silêncio observando o nada. Me arrependia profundamente da ansia de tratá-lo tão mal. As palavras cortam. Mesmo Michael sendo tão "rude", sabia que tinha seu lado sensível, bem lá no fundo, e que marcava presença quando ninguém mais estava por perto. - Me desculpe, ok?
- Não...precisa se desculpar. Só quero que entenda que, o que houve lá com a Jennifer, não foi nada demais. Algumas coisas precisavam ser esclarecidas.
- Deveria ter esclarecido antes de beijar outra garota e criar sentimentos nela. - Pela primeira vez encarei Michael sem medo. Que fez o mesmo mais logo desviou os olhos. Seu nariz tomou uma cor avermelhada, assim como seus olhos, bochecha e orelhas. Não sabia se era vergonha, se ele estava chorando ou era apenas um espirro surgindo.
- Namorei a Jennifer por algum tempo assim que entrei no colégio. Ela era diferente do que é agora. Menos egoísta, antipática, conversava com todos e não judiava dos novatos como tem costume. Quando começou a mudar e se tornar quem ela é agora, resolvi me afastar antes que me tornasse parte disso. - Parecia um alívio para ele contar boa parte da história. Mas imaginar Michael beijando Jennifer me deixava louca. E ficava ainda mais louca em imaginar que aquela história pudesse também ser mentira. - Sei o que deve estar pensando. Que estou inventando toda essa história só pra gente voltar a ser como éramos antes de você saber que eu tinha algo com a Jennifer. Não importa. Só acho que você precisa de alguém do seu lado pra te proteger.
- Não preciso disso, Michael. Você tem sua vida. E a gente é novo demais pra isso. Ou melhor, eu sou nova demais. Você já viveu o que tinha que viver na sua idade. Apenas esquece a minha história.
- Não quero isso. Ainda não entendeu? - Michael se virou na minha direção e respirou bem fundo. Tinha pouca iluminação no quarto abafado, mas ainda assim eu podia ver dois pontos brilhantes na direção do meu rosto. Que reluziam feito duas estrelas. Via a forma do seu rosto, o contorno do seu pescoço, orelha, nariz, era tudo um borrão perfeito.
- O que você quer então? - Minha voz deu uma leve falhada antes mesmo de perceber que estava me entregando. Michael se aproximou de mim feito um gato. Suas mãos já estavam contra a parede e seu corpo se encontrava sobre o meu, e sem se importar ele se acomodou no meu colo. É claro que a situação deveria ser ao inverso, mas não liguei em ter aquele contato e momento tão íntimo, que por dentro me fez rir e eu sabia, que depois iria lembrar disso tudo e riria sozinha. Estava encurralada e sem saída totalmente. Seu peso todo concentrado sobre mim me deixava em opção a não ser erguer a cabeça e tentar olhar em seus olhos como uma verdadeira mulher. Ou guerreira, como ele mesmo havia dito que eu era. Seu sorriso era largo e fazia seus olhos meio que se fecharem. Era a melhor imagem que eu tive durante todo o dia. Aquele lábio grosso e corado se curvando para mim. A curva mais linda de Michael era seu sorriso, e preenchia todos os ecos dentro de mim de uma única vez, com seus ruídos silenciosos. Ele não precisou dizer nada, apenas mover seus lábios para que eu pudesse lê-los que tudo o que ele mais queria, era eu. E eu me senti especial por isso. Não tanto quanto podia, mais era o suficiente.

Sua mão gelada tocou bem sobre a minha nuca, passando por debaixo dos meus cabelos e me afagando, arrepiando qualquer resquício de pelo sobre a minha pele. Era uma sensação gostosa e calorosa, jamais sentida por mim e que por sinal, me permitiria a aceitar que ele continuasse, e não parasse tão pouco. Fechei meus olhos por alguns minutos e me desliguei do mundo, me permitindo também a sentir o contato dos seus lábios contra o meu, pedindo um beijo do qual eu sabia que era capaz de dar, e eu o fiz sem dó.


Não durou tanta a nossa noite como esperava. Michael fugiu as pressas assim que papai chegou, mais conversamos boa parte da noite por mensagem via celular. Não sabia se havia feito a escolha certa. Se deveria estar e ficar com Michael embora as circunstâncias, só algo importava naquele momento. A minha felicidade e nada mais.

*D.K. 21:21
Horas iguais. XD
*MelanieCinza. 21:21
Sabe o que significa nao eh mesmo?
*D.K.21:22
Hmmmmmmm, naaao?
*MelanieCinza. 21:23
idiota. Por isso te odeio tanto.
*D.K.21:23
nao pareceu hoje mais cedo. :O
*MelanieCinza.21:25
para de ser tão idiota, voce me obrigooou.
*D.K.21:25
quer ir ao baile comigo, senhorita Melanie?
*MelanieCinza:21:28
    digitando...
*D.K.21:30
Mel, por favor.
*MelanieCinza:21:30
Não me faça pressão psicológica, caso contrário é ai mesmo que eu não vou. Nem sabia de baile :O
*D.K.21:32
Nem eu. Fui saber agora pelo grupo do colégio, a festa foi combinada hoje pelos representantes de sala. Amanhã vão estar distribuindo os convites. Vou comprar dois, espero que vá comigo.
*MelanieCinza:21:35
Já disse pra parar de pressão psicológica. Não funciona comigo. Não quando estão fazendo comigo, só quando estou fazendo com as pessoas. Entendeu? :9
*D.K.21:37
Entendi. Vou considerar essa falta de resposta como um "sim".
*MelanieCinza:21:38
Veremos como irá se portar durante este resto de semana.
*D.K.21:39
Como um perfeito cavaleiro.
*MelanieCinza:21:41
Seja meu rebelde.
*D.K.21:42
Seu cavaleiro rebelde. Isso dá um nome de filme.
*MelanieCinza:21:43
Não quebra o clima...
*D.K.21:44
Vai ser a menina mais linda do baile de outono de Preciosa.
*MelanieCinza:21:46
Não sou boa com vestidos e saltos, não fui criada para ser delicada.
*D.K.21:48
Não tem problema. Adoro garotas rudes. Mas será uma surpresa e tanto, te ver vestida feito uma menininha, sábado a noite.
*MelanieCinza:21:50
???? Veremos. Boa noite cavalheiro.
*D.K.21:52
Boa noite minha pequena...durma com os anjos, já que não posso estar ai.

* * *
Durante toda a minha semana a minha busca pelo vestido perfeito foi um verdadeiro trabalho. Boa parte das lojas de Preciosas preferiam adaptar ou até mesmo fazer o vestido a comprá-los de fabricas do interior da cidade. Fazia um bom tempo que não procurava comprar outras roupas. Já que as de Beatrice serviam em mim embora eu tivesse mais curvas que ela, mesmo que fosse alguns anos mais nova. Lembro o quanto mamãe se impressionava em me ver vestir os jeans de Bea e suas camisas de botões quando queria ficar em casa, ou andar pela cidade em busca de qualquer distração. No fim, comprei os tecidos para o vestido e a renda, e levei no que parecia ser a mais aconselhável costureira da cidade, onde todos recomendavam pela sua ótima mão com tecidos delicados. E pra minha surpresa.

Reencontrei boa parte das garotas do colégio por lá, querendo ver seus vestidos prontos, e até mesmo, tentando de qualquer forma, induzir a pobre velha a fazerem o mais rápido possível. Tinha a intenção de surpreender Michael com a minha postura diferente ao menos por uma noite. Mas sabia que não surpreenderia apenas ele, mas também a todos do colégio por me acharem tão diferente e fora do que eles consideravam um padrão. Minha sorte foi que a senhorita, cujo o nome era "Flor", já havia feito algumas blusas para mamãe assim que chegamos, além das entregas que Sara não havia ido pegar ela aceitou com gratidão fazer meu vestido, já que mamãe havia pago todos os pedidos com antecedência, e no fim, não usaria nada. Foi sexta-feira a noite que Flor me ligou pedindo que fosse experimentar o vestido e ver se estava da forma que queria. Mas sabia que ela acertaria no ponto do que eu imaginava e do que realmente queria.

Logo no sábado de manhã fiz todo o serviço em casa, ajudei Pedro a organizar seu quarto e papai a limpar a varanda, deixei Beatrice fazendo o resto para que pudesse buscar nossos dois vestidos. Certo que eu poderia tentar adaptar eu mesma um vestido pra mim, mas talvez não funcionasse tão bem. Michael veio me buscar em minutos e me deixou de frente com a loja da costureira. Prometi que só mostraria o vestido a noite e ele aceitou sem dúvidas, mas com um leve receio do que iria ver. Até entendia seu ponto de vista, mais aquilo me fazia rir ao pensar no seu medo.


A noite finalmente chegou. Pra mim tudo estava diferente, desde o céu que eu tinha visão do meu quarto enquanto me maquiava, até o tratamento mais delicado vindo do meu pai ao ver suas duas filhas se vestirem para o seu primeiro baile. Sim, é o nosso primeiro baile. Nunca havíamos participado de nenhum dos que a nossa antiga escola dava. Eu ainda tinha a chance de dizer que nunca havia sido convidada por ninguém, enquanto Beatrice, não foi por mamãe nunca ter aceitado. Meus cabelos haviam sido alisados por Bea a poucas horas, minha maquiagem negra realçou meus olhos e meu tom de pele de forma em que até eu mesmo me olhasse no espelho e me surpreendesse em ver uma mulher, não uma menina de apenas dezesseis anos de idade. Minha pele estava corada e saudável como nunca. Dizem que amar faz isso com a gente, e eu estava considerando essa opção. Quando pude colocar meu vestido e meu salto que não era tão alto, mais me deixava esbelta em frente ao espelho, tudo mudou.

Meu vestido era todo negro e justo na cintura e nos seios. Sua barra era cumprida e de um tecido fino e levemente transparente, se não fosse pelo seu forro por baixo, que forjava uma saia, mais não perdia sua elegância. Todo esse tecido fino era preenchido por diversas borboletas pintadas em branco, eram grandes e chamavam a atenção, e a cada degrau que eu seguia em direção a sala na espera por Michael. O pano esvoaçava, e me sentia uma verdadeira borboleta de asas negras. Papai quis me fotografar, embora odiasse, eu aceitei tranquilamente. Enquanto Beatrice optou por um vestido vermelho com um decote profundo nas costas, e um colar cumprido invertido. Seu salto era muito alto, e como sempre, ela estava ainda mais bonita do que eu.
- Espero que aproveitem bem o baile de vocês. Lembro como se fosse hoje o primeiro baile meu e da mãe de vocês. Foi intenso. - Papai dizia, nos olhando sentado em sua poltrona com o controle da TV em uma das mãos. Beatrice andava de um lado ao outro enquanto eu me sentia a ponto de explodir. Meu estômago todo estava se formando uma bola, e eu precisava colocar para fora, mas era algo impossível e doloroso. E que só passaria quando Michael estivesse aqui e não me fizesse esperar tanto. No fim, Beatrice acabou indo antes com seu companheiro, e eu ainda fiquei sentada na varanda aguardando por algo que parecia não chegar ou acontecer. O baile estava marcado para as 21:30, e já marcava no relógio do meu celular 21:00 e nada de Michael chegar. Nenhuma mensagem, nenhuma ligação após ele ter me deixado em casa hoje mais cedo. Podia sim ter acontecido algo, mas ele teria me avisado ainda assim. Poderia estar colocando confiança demais em alguém, inclusive Michael, mas algo bem lá no fundo do meu peito, dizia para prosseguir e me entregar sem pensar nas consequências, porque seria beneficiada.

Michael só foi chegar 10 minutos depois de eu ter ligado em seu celular pelo menos cinco vezes e ter brigado com o meu, e implorar pra tirar aquele salto tão alto e incomodo dos meus pés.

* * *
Todo o colégio havia sido preenchido por balões cor de gelo e rosa. Como todas as noites ultimamente vinham sendo frias, aquela não seria diferente. Inclusive lá dentro. Cortinas branco e rosa, fumaça de gelo seco, mesas enormes preenchidas por bebidas coloridas e saturadas no álcool, algo que eu aprendi a pouco tempo e não me enganava mais. Boa parte das meninas se surpreenderam ao me ver chegar no colégio com Michael, que trocou sua Harley por um carro mais confortável. Disse não ser só pela temperatura, mas por saber que eu merecia algo melhor, ainda mais estando tão bonita. Consegui andar com ele por todo a quadra de esportes da escola. Ele fez questão de cumprimentar a todos, inclusive a Jennifer, que faltou escarrar no copo da amiga ao ver com Michael. Vendo assim por sobre os ombros ela realmente estava linda, e chamaria a atenção de qualquer pessoa, menos do seu acompanhante da noite, que não combinava com o que ela era, e preferia estar de olho ao celular do que ao que ela vestia, e isso fez Michael rir após eu comentar da situação em que ela se encontrava.
- Deveria ter pena. - Disse um pouco mais alto. O som estava alto, além do palco centralizado e com as cortinas ainda fechadas. Anunciaram em primeira mão que teríamos um show aquela noite.
- Eu não tenho. Ela não tem, porque eu teria pena dela? - Seu sorriso se abriu pra mim pela primeira vez naquela noite. Michael havia caprichado na sua roupa de baile, e por falar nisso, havia me dado uma rosa branca linda, que combinou super bem com o meu vestido, e se tornou parte do acessório da noite.
- Não sei. Por ela ser sua ex-namorada? - Ele estava com um terno preto super lindo e bem passado, camisa branca sem um amarrotado se quer, e gravata borboleta preta. Seu rosto estava mais iluminado que nunca, além é claro da barba feita, que ainda assim esfregou na minha pele ao me beijar no rosto e na testa assim que nos encontramos.
- Eu tenho uma namorada. - Sorri ao ouvir seu comentário, e ele apenas me deu um dos seus típicos selinhos, e me arrastou em meio as pessoas para tentar me fazer dançar. Não funcionou tão bem, mas ao menos me alegrou e me fez rir alto. Michael me rodou, me abraçou forte, olhou nos meus olhos, alisou meus cabelos, elogiou meu vestido, até eu pisar em seu pé e ele reclamar sobre algo envolvendo engraxar sapatos durante horas. Sabia o que ele estava querendo dizer, sobre o trabalho que dava para se arrumar tanto e eu desfazer tudo. Quando todos os vidros da escola se estilhaçaram. Não era bem um ruído estrondoso, mais incomodo o bastante para fazer todos se encolherem e gritarem, mesmo com o som da música alta, podia ouvir os gritos de desespero, uma mistura de homens e mulheres se esgoelando e em busca de saída de algo que havia invadido a quadra e pelo visto, trancado a todos ali.

Michael conseguiu me envolver em seus braços e me tirar do centro das atenções. Vi o branco se tornar vermelho e o grito de felicidade se tornar de dor. Em meio a todo aquele desespero ainda pude ver Michael procurando o celular no bolso e tentando falar com alguém mais não conseguia. Mal tinha forças para sair do lugar e segui-lo para tentar ajudá-lo, porque tudo o que meus olhos queriam, era acompanhar a criatura estranha e conhecida por mim como o grande sanguessuga da noite. E logo que ele me encontrou em meio a multidão, eu vi o brilho vermelho de seus olhos e ele também me reconheceu, soube disso assim que suas presas enormes ficaram evidentes para mim, e seu corpo, se curvou levemente. Eu era a rainha deles.

Parte Oito - Tudo que sei sobre ele.

Logo na segunda-feira tivemos uma surpresa que pegou todos desprevenidos, inclusive a mim mesma. Diante de toda essa situação não pensava que as pessoas ainda queriam se divertir, e também havia conseguido me esquecer totalmente do programa da semana no colégio. O professor Silvio de história nos apresentou boa parte dos seus planos para todos estes dias, e até que seria bom. Sairíamos da rotina finalmente, e o melhor, iríamos conhecer melhor Paraíso. O que me fez ficar mais apreensiva ainda, e com isso, passar boa parte do tempo encarando Michael, que parecia entender meus planos, mas também não iria me segurar. Estava pegando a minha mochila no armário e deixando boa parte dos livros que não usaria para trás quando Michael me cutucou. Seu rosto estava um pouco vermelho, inclusive as orelhas.

- O que foi? - Sussurrei. O corredor estava com todos os alunos do primeiro colegial, e a maioria esperava o horário de saída do ônibus, e como Patrícia havia se afastado de mim após descobrir meu envolvimento com Michael, estava sozinha.

- Vou ficar com você. - Não mais sozinha.

- Quem te falou isso? - Olhei em volta da gente e em seguida, bati a porta do meu armário. O que causou um estrondo que fez todos me olharem. Se a intenção era não chamar a atenção eu havia conseguido.

- Eu. Você não vai ficar sozinha, e sei dos seus planos, vou cuidar de você esqueceu?

- Não me lembro de ter conversado com o meu pai e se tornado meu guarda-costas. - Arqueei uma das sobrancelhas na tentativa de desafiá-lo, como sempre, ele conseguia quebrar toda a barreira "séria" minha.

- Não interessa se falei com ele ou não. Agora vem. Vamos esperar lá fora. - Sabia bem o que ele queria. Sua mão estava soada quando pegou na minha e me arrastando, me levou pro estacionamento do vazio, ou quase. Alguns funcionários da escola estavam lá, inclusive o nosso professor de História, o diretor e sua secretária, como sempre, seguindo-o e anotando quaisquer que fosse suas palavras idiotas. Esta era a primeira vez em que o via presente e conversando com seus funcionários. Geralmente ele sempre estava ocupado, com pressa, e nem se interessava pelo desempenho ou desejo de terceiros. Michael sentou na beirada da sarjeta próxima a sua moto, e em minutos ouvi o riscar do fósforo. Ele só queria estar ali fora para isso, e ainda assim me fez sorrir com toda a sua marra. Naquela manhã ele estava com uma camisa polo preta, uma calça jeans justa cheia de bolsos e o coturno de todos os dias. Seu cabelo havia sido cortado ao velho estilo militar, e que combinava somente com ele. Se não fosse duas argolas em uma das orelhas, ainda diria que ele era o garoto perfeito, mas vendo-o soltar a fumaça pelo canto dos lábios, só mudava totalmente a minha visão dele.

- Você ainda vai se matar com tanta nicotina. - Disse. Senti seus olhos imediatamente sobre mim, seguido por uma gargalhada debochada que ecoou por todo estacionamento. O diretor olhou diretamente para mim mas também não moveu um músculo do corpo para ir ver o que fazíamos sentados ali em meio a tanta fumaça. As coisas naquele colégio eram bem diferentes. Boa parte das coisas que deveriam ser proibidas, eram liberadas, até que era bom as vezes. Só que cadê a graça de se quebrar as regras?

- Sabia que 99% dos casos de morte por cigarro são de pessoas que absorvem essa fumaça? Desculpa querida, sou um caso raro. Quem vai morrer antes é você. - Desta vez ele me surpreendeu. Bati um dos pés no chão e me virei. Olhei rapidamente para o céu que como sempre estava nublado e lotado de nuvens que em boa parte do dia, resolvia liberar suas gotinhas e molhar toda a cidade, e como sempre, me deixar entediada. - Você esta muito bonita hoje, Mel.

- Devo levar isso como um elogio ou uma ironia?

- Como um elogio. É difícil me ouvir elogiando garotas, inclusive meninas como você. - Não estava tão bem vestida assim, mas me sentia diferente após o dia anterior. Troquei as minhas velhas meias curtas por uma 7/8, minha saia estava um pouco mais curta, camisa branca e a gravata havia sido retirada assim que guardei meus livros no armário. Prendi os cabelos num coque e pintei meus olhos enquanto a minha irmã tentava consertar o carro para nos levarmos a escola. Se não fosse isso, diria que estava exatamente como nos outros dias. Só que ainda assim me senti feliz ao perceber que ele, Michael, havia me notado. Nós já tínhamos nos beijado, abraçado, ele cuidado de mim, e ainda assim, aquele era seu primeiro elogio.

- Achei que você era o típico garanhão da cidade. As garotas faltam se matar pra ficar perto de você, vivem te pedindo favores.

- Isso não quer dizer que durmo com cada uma delas todas as noites. Sou um cara de família, você viu isso já. - Seu olhar se voltou para mim e eu apenas contrai meus lábios na intenção de me concentrar ou liberar o nervosismo que percorreu toda a linha do meu corpo. Michael estava certo. Em um fim de semana tive a chance de ver que Michael não era o típico garoto que tinha todas as garotas em sua casa todas as noites, ainda assim as garotas queriam estar perto dele, o que me incluía nisso, mas eu não assumia.

- Garotos, vamos pro ônibus? - Como em todos os colégios os ônibus por aqui eram amarelos e chamativos. Boa parte dos alunos já estavam acumulados na porta do transporte enquanto Michael e eu estávamos parados apenas observando a situação. Somente quando todos já estavam lá dentro e tinha dois lugares vagos que nos acomodamos lá. Michael não conseguiu se sentar do meu lado, ficou junto de Jennifer, cujo a garota já havia até me esquecido durante estes dias. Vi como ela queria de todas as formas flertar com ele, e pelo visto não era apenas eu quem notava isso, já que Patrícia, que ficou do meu lado, e sorriu para mim após essa semana toda e os outros dias também, não tirou os olhos do "casal". Eu poderia tentar dizer qualquer coisa, mas não me veio em mente absolutamente nada que eu pudesse falar para ela, inclusive para tirar a ideia que eu via em seus olhos de que aquilo me incomodava - realmente incomodava -.

- Esta tudo bem? - Tentei. Olhando de soslaio para Patrícia que apenas deu de ombros e virou o rosto na direção da janela. Já que passaria boa parte do trajeto sem ninguém pra conversar, deitei bem meu corpo no banco, e fechei meus olhos por alguns segundos. Foi como se em segundos todos os meus outros sentidos ficassem mais aguçados, inclusive audição. Ouvia qualquer sussurro, suspiro, arfar, qualquer coisa. Saltei do banco o que causou um espanto em Patrícia que me olhou feio, mas se encolheu ainda mais no canto do ônibus. O que quer que estivesse acontecendo comigo, só estava se intensificando, e era grave.

* * *

Logo em que chegamos ao que parecia ser uma cidade vizinha de "Preciosa", todos os alunos desceram e em grupos fomos acompanhando os dois professores que cuidariam da gente naquele dia todo. Michael se manteve do meu lado, e pela primeira vez notei o quanto ele tentava segurar a minha mão, quando não, envolvia seu dedinho no meu e me puxava para não nos perdemos ou nos separarmos um minuto que fosse. Minha preocupação era que alguém notasse e comentasse, no fim, esses comentários chegariam nos ouvidos de quem não devia, e quem sofreria as causas disso seria eu. O professor nos deixou em uma esquina de descida, toda em pedregulos e escorregadia demais para os nossos sapatos, mas foi bom olhar para cima perceber que o nosso ponto de acesso e visita naquele momento seria uma biblioteca da cidade.

- Esta é "Paradise Library". O próprio nome já diz, um paraíso para os amantes literários. Aos que adoram uma boa história, terá prazer em se perder num lugar tão perfeito. Entrem meninos e meninas. - Disse o diretor, empurrando alguns teimosos para dentro da biblioteca. Eu não precisava ser forçada a estar ali, ia de espontanea vontade.

Passei pela porta de madeira que me recepcionou com uma sineta, que me lembrou os filmes antigos e descrições de livros antigos que eu tinha em casa. O cheiro daquele lugar era tão familiar e ao mesmo tempo me deixava ansiosa, com aquela tranquilidade que a muitos dias eu não sentia. Quando comecei a me espalhar pela livraria-biblioteca, a mão de Michael segurou meu braço e me fez voltar ao ver a categoria em que estava entrando.

- Da pra me largar? - Olhei firme em seus olhos e me arrastei mais um pouco até encontrar o tema em que precisava: Vampiro e Seres Sobrenaturais.

Tinha muitos livros de um único tema, e perderia muito tempo focando em todos, se encontrasse apenas um que falasse tudo a respeito do que precisava, facilitaria a minha vida.

- Não vou te largar, você esta fazendo a coisa mais estúpida.

- Porque estúpida? Só quero respostas para várias das minhas dúvidas.

- Eu já disse pra deixar quieta essas suas dúvidas. Na hora certa elas serão esclarecidas, pela pessoa certa. - Revirei os olhos e me soltei de Michael. Passando os dedos pelas lombadas empoeiradas de vários livros, fui indo mais a fundo, até que um deles me chamou ainda mais a atenção. Sua capa era preta e não havia nome algum, a não ser alguns detalhes em vinho que com o tempo perdeu sua cor e se tornou acinzentada, mas engraçado que o tempo o preservou e tornou-o mais bonito. Puxei ele até poder segurá-lo melhor. Sem abri-lo eu dava no minimo 500 páginas, só que me surpreendi ao ver que era um pouco mais que isso. Suas páginas eram amareladas e cheiravam a mofo e algo mais doce.

- Acho que encontrei a "pessoa" que vai me responder as minhas dúvidas. Deveria ser você, mas já que não é capaz disso, vou eu mesmo atrás delas. - E fui em busca de uma mesa vazia para que pudesse me sentar e ler.

* * *
Desde de todo o acontecido não havia pego livro algum para ler, nem mesmo pego a minha máquina fotográfica para registrar as coisas. Primeiro porque achava desnecessário e por não haver motivos. Mas desta vez, tinha muitos motivos, e enquanto não resolvesse cada um deles, não sossegaria. Me conhecia bem e sabia como eu era, complicada, teimosa ao extremo, havia herdado isso da minha mãe e tinha orgulho de dizer para todos sobre isso. Michael não saiu do meu lado enquanto revirava o livro e anotava no meu caderninho cada coisa que eu achava interessante, certo que a opção seria pesquisar na internet e imprimir cada dado que eu considerava necessário, mas daria folhas demais e papai desconfiaria. Boa parte dos alunos já haviam se cansado quando resolvi erguer a cabeça e ver o que me cercava ainda.

Patrícia ainda estava na livraria-biblioteca com seu "namorado", Jennifer também, o professor se esqueceu de tudo e todos ao se acomodar numa cadeira velha e acinzentada nos fundos do recinto, e cochilava com um livro no peito. Os alunos estavam entediados ali, olhei no enorme elogio pendurado próximo ao balcão e pelas minhas contas, estávamos ali a exatas duas horas. Era um tempo recorde para todos, acreditava que a chuva que caia lá fora desanimou a todos para tentarem fugirem e irem para qualquer outro lugar. Com isso aproveitei o momento para esticar meus braços e pernas.
- Aonde você esta indo? - Disse Michael meio sonolento. Sorri ao ver sua bochecha avermelhada, assim como seus olhos brilhantes na minha direção. Passei a mão por algumas mexas de cabelo solta e as coloquei por de trás das minhas orelhas, e acredite, ele sorriu ao me ver fazendo isso, e me deixou mais envergonhada ainda.
- Indo em busca de qualquer líquido que passe essa secura na minha boca. - E fui caminhando até o balcão. Acredite, até o dono do lugar tinha fugido para os fundos, e pelo visto, não voltaria e nem se preocuparia. Quando encontrei um enorme corredor ainda abarrotado de caixas de livros empoeirados e algumas máquinas velhas de escrever, fui andando ali em meio as luzes penduradas e bolor. Nem percebi quando Michael veio logo atrás e me segurou de novo pelos braços, não me contive. - Poxa vida, to ficando cansada de você ficar me pegando assim pelo braço. Dá pra parar com isso?
- Quer que eu te segure como? Você toma suas atitudes por impulso e acaba se ferrando com isso. Sossega!! Chega de becos, florestas e qualquer outra merda que te coloque em risco.
- Eu não to atrás de me ferrar e nem quero. Só quero que pare de me tratar feito criança, e me segure como uma das suas vadias. - E novamente me senti ferver por dentro. Era como se a chama dentro de mim subisse de uma única vez a ponto de me deixar tonta. Pelo olhar fulminante de Michael, nada do que eu disse havia lhe agrado. Era essa a intenção, bem, mais ou menos a intenção. - Me desculpe ok? Só...falei demais.

De fato o que ele disse era verdade. Eu era impulsiva e não assumia isso, mas em meus pensamentos eu entendia que em algum momento eu acabaria me ferindo por conta das minhas atitudes não pensadas. Ok, elas eram bem pensadas. Mas se eu não errasse, como não aprenderia? Vai que dava certo.
- Entendeu quando eu digo sobre impulso? - E então ele deu as costas para mim e me deixou sozinha no corredor. Pude perceber melhor os detalhes do seu corpo. Suas pernas eram levemente delineadas assim como suas costas, largar e aparentemente firmes. Minhas mãos chegaram a formigar na intenção de estendê-las e tentar tocá-las, mas soube me conter ao menos agora. Sua nuca era lisa e com os traços do cabelo recém aparado. Michael tinha um gingado engraçado, andava meio duro, quase que na ponta do pé na intenção de ficar mais alto ou parecer mais homem. Mal sabia ele que não tinha necessidade disso.


No final das contas o professor somente acordou quando um dos alunos o cutucou boa parte do tempo. Até eu estava cansada de ficar ali sozinha já que Michael conseguiu sair da livraria, e eu via ele fumar na lateral da porta do estabelecimento, e não me pergunte como eu sabia. Vi pela fumaça constante, e não era a fumaça que a gente libera pela boca quando se esta frio demais, era a fumaça do cigarro de Michael. Ele estava nervoso, eu sabia. Sempre tinha este costumo de irritar as pessoas, boa parte das vezes eu ficava sem entender o motivo, só que desta vez, eu sabia. Disfarcei um pouco antes de pegar o livro que trazia na minha mochila, sim, eu trouxe ela, mesmo desejando-a deixá-la na escola. Andei pelas mesmas fileiras em que encontrei aquele enorme livro, e no seu lugar coloquei um antigo que eu trazia na bolsa. Era da mesma grossura e tamanho, a capa era escura mas tinha escritas, diferente do que eu guardei comigo. Não havia etiqueta nem nada, e o dono se realmente se preocupasse, não deixaria um bando de adolescentes sozinhos na sua livraria.

O professor nos fez sair e agradecer o dono, que por sinal era um coreano velho e cego, percebi ai acenar para o outro lado quando passei bem na sua frente. Michael já estava lá e pisava no que parecia ser a bituca do seu cigarro, e liberava pelo canto da boca avermelhada o resto de fumaça. Ele por incrível que pareça se acomodou de volta ao meu lado, mas não olhou no meu rosto, nem sorriu ou me reprimiu.
- Como vocês podem ver a chuva atrapalhou um pouco do nosso passeio. O que é um problema. Mas agora que ela cedeu eu vou oferecer a vocês a chance de conhecerem um pouco esse lugar. Marcamos de nos encontrar exatamente naquela fonte daqui a 4 horas. Nada mais que isso, ok pessoal?
- Tem certeza de que foi a chuva que atrapalhou nosso passeio, professor? Ou foi a sessão cochilo dentro de uma livraria? - Gritou Jennifer. Aquilo me fez revirar os olhos e ter vontade de grudar em seus cabelos até arrancar cada um dos seus apliques. Pior de tudo foi ver boa parte das pessoas acharem graça da situação, e ela olhar para todos como se fosse a preferida. Mordisquei os lábios e peguei na mão de Michael e o arrastei para uma das ruas em que havia visto assim que chegamos na livraria.
- Porque você esta me arrastando agora?
- Não estou te arrastando. Estou te trazendo comigo, é bem diferente. - Cochichei. Parei somente quando estávamos bem longe de todos, e completamente sozinhos. Mostrei para ele o livro da bolsa. E adivinha? Ele faltou me matar.
- VOCÊ ESTA FICANDO LOUCA, MELANIE? TIPO, EU JÁ FIZ MUITA COISA ESTÚPIDA, MAS ROUBAR UM LIVRO?
- Não roubei, só peguei emprestado. - Disse sem pestanejar.
- E dai? Esse livro deve ser uma relíquia, e eles vão sentir falta disso.
- Vão nada, Michael. Para de drama. Minhas anotações não adiantariam de nada, e já que não emprestam ou vendem, eu o peguei. E não estou sentindo remorso algum. Será que pode me levar pra algum lugar? - Sussurrei. Ajeitando de volta o livro e cruzando meus braços. Estava de fato esfriando após aquela chuva, e pra variar meu cabelo estava ficando cada vez mais úmido com a ajuda do sereno, e armando. Meu rosto deveria estar corado feito um morango, e essa deveria ser a menor das minhas preocupações.
- Aonde você quer ir? Quem é que desejava ser tratada feito adulto aqui?
- Eu estou com fome. Sai sem café da manhã como todos os dias, mas desta vez a fome é maior do que nos outros. Você conhece esse buraco melhor do que eu. - Segurei firme com as duas mãos a alça da minha bolsa até os nós dos meus dedos ficarem branco.
- Vem cá. - Com delicadeza ele segurou a minha mão e foi me levando de volta as ruas principais. Até agora não sabia o nome do bairro em que estávamos. As ruas tinham nomes estranhos e todos pareciam ser de santos conhecidos, mas por mim, totalmente desconhecidos. Subimos uma das vielas até estarmos em frente ao que parecia ser uma cafeteria antiga. Suas luzes eram bem fracas e o movimento era pequeno, boa parte era senhoras pegando o pão para o café e outras coisas boas que eu bati o olho e me interessei. - Senta lá que eu levo na mesa.

Obedecendo, procurei uma mesa limpa para nos dois. Me acomodei bem nela e deixei a mochila no espaço vago entre mim. Sabia que Michael se sentaria bem na minha frente, jamais se sentaria do meu lado como um casal normal. Ainda assim, era bom pensar que eu ele tínhamos alguma coisa diante de tanta preocupação vinda dele, chegava a ser fofo. Não demorou muito para que ele voltasse com dois pratinhos na mão com vários quadradinhos conhecidos. Ou melhor, uma massa rápida e básica, conhecida por qualquer pessoa por wafer. Quis rir da cena, aquilo jamais mataria a minha fome. Até ver ele voltar ao balcão e trazer numa travessa bem pequena várias frutas vermelhas picadas. Tudo era bem misto, tinha morango, cerejas, ameixas, amoras pretas e vermelhas, além de mel e um copo branco de tão gelado com suco de laranja. Parecia tudo delicioso e pelo sorriso de Michael ele estava satisfeito.
- Uau. Esse é o café da manhã de vocês aqui?
- Me diz você. Quem morou em Louisiana? Vocês não comiam isso? É tão normal comer wafer, croissant, frutas, pães, baccon e ovos mexidos de manhã.
- Em casa não temos costume de tomar café. Digo, tomamos café, mas não algo assim.
- Eu entendo. - Devagar Michael se acomodou do meu lado. Seu prato era exatamente igual ao meu, só que ao invés de mel, ele tinha chocolate entre seu wafer e as frutas que foram jogadas em cima. Não demorou muito que ele começasse a comer sem pressa.
- Obrigada por estar sendo esse cara teimoso e que não desistiu de mim. - Disse sem pensar muito. Michael ainda mastigava devagar e me olhou bem nos olhos. Ele parecia ler a minha alma, tive essa exata impressão quando ele estendeu a mão e ajeitou o meu cabelo, colocando-o por de trás da orelha. O pequeno contato com a minha pele me arrepiou e me fez perder todo o foco do momento. Era um toque frio mas que me fez borbulhar ainda mais por dentro. As borboletas que antes estavam adormecidas no meu estômago, voltaram a viver, e somente Michael conseguia isso e sentia orgulho em falar disso.
- Acho que já me agradeceu demais, Mel. Fica tranquila. - Não era bem as palavras que esperava ouvir, mais vindas de Michael não me importava mais nada. Suspirei por um momento e me voltei para o prato a minha frente. Tentei comer sem me lambuzar demais, só que era uma atitude totalmente fracassada, o que causou risos constantes em Michael, e até mesmo a atitude dele em me ajudar a limpar a boca, só tornava as coisas pior. Quando terminamos de comer, ele pagou a conta e nos saímos juntos, sem segurar a mão um do outro. Mas era como se meu corpo quisesse e precisasse do contato dele comigo. Não tomaria a atitude de segurá-lo ou pressioná-lo a algo que ele não queria. Ainda assim, lado a lado fomos caminhando ao que parecia ser uma praça, próxima a fonte em que era o ponto de encontro de todos. Michael foi comigo até próxima a um dos bancos ainda secos bem debaixo de uma das árvores, e meio sem jeito ele enfiou as pernas pelo buraco vago do banco, de modo que ficasse de frente para mim, que se sentou bem ao lado dele.
- Vou te contar uma história, e quero que preste bem a atenção porque é tudo envolvendo você e o que esta acontecendo, certo? - Assenti sem entender. - Você não deve conhecer bem histórias da cidade, e acredito que tenha sido esse o motivo das pessoas terem um pouco de medo de se aproximarem de você no colégio. Em hipótese alguma deve perguntar para alguém o que houve em Preciosa, porque são perguntas que muita gente ainda não sabe responder, e outras, tem respostas que você não vai querer ouvir, como também, não será agradável. Enfim. Logo que me mudei para Preciosa muita coisa já tinha acontecido e meu pai estranhamente tinha resposta para tudo, inclusive o incidente de uma moça que havia sido morta e coincidentemente, todo o sangue do seu corpo havia sido drenado, e sem nenhum outro tipo de ferimento, apenas dois furos em seu pescoço e uma mordida em seu pulso.
- O que isso tem a ver com o que eu quero entender?
- Houve muitos boatos sobre vampiros na cidade. Mais como outras mortes aconteceram mais logo pararam, tudo foi arquivado, e boa parte dos moradores antigos resolveram preservar a situação assim. Sem que os moradores novos e os "adolescentes" soubessem o que aconteceu. Só que é meio difícil. A primeira morte que aconteceu foi de uma coreana que viveu aqui durante anos, e quem conheceu ela, disse que jamais envelhecia.
- Ela era um deles?
- Eu não sei bem te dizer. Isso vou ficar te devendo. Só que ao invadirem seu apartamento após sua morte, encontraram muita coisa. Inclusive uma katana antiga e um porão debaixo da sua casa. Dizem que havia muita coisa lá, inclusive pesquisas sobre vampiros, jornais antigos que davam a entender que aqui em Preciosa, já existia os "seres da noite" desde antes de muita coisa ter acontecido. Pesquisando melhor sobre a mulher eu descobri muita coisa. Ela era uma espécie de ninja especial. Cresceu com um sensei e tudo, e foi criada para ser uma espécie de arma mortal.
- Ahhh você já esta meio que exagerando não é? Onde que uma mulher seria algo assim?
- Também não acreditei quando li isso. Mas um dia escutando a conversa do meu pai quando ainda era mais novo e sabia me esconder bem. Ouvi ele dizer que a mulher guardava todos as presas de seus vampiros neste porão, e havia muitas presas guardadas, além de outros elementos que pelo que eu saiba, são armas mortais para os vampiros, além é claro da prata, alho, cruz e água benta. Só que ela foi muito fundo nisso tudo e acabou sendo morta, mesmo sendo uma delas. - Comecei a rir da coisa toda, mais era uma risada alta e profunda que eu não me contive e nem conseguia segurar. Enquanto Michael me olhava sem entender, quando consegui parar, limpei as lágrimas dos meus olhos e respirei fundo.
- O que esta querendo dizer disso tudo?
- Que eu juntando uma coisa com a outra, tenho quase certeza. Sua mãe era exatamente como essa mulher, e a caixa que eles roubaram, deveria ter muitos segredos que ela deveria ter guardado melhor. E se ela te deu a caixa, é porque ela acreditava que seus "poderes" poderiam ser passados para você. E esta na hora de você fazer o papel dela.
- Michael, eu não sei nem me defender de mim mesma. Quem me dera de vampiros. E da onde você tirou toda essa história?
- Você não estava pesquisando e queria respostas? Eu estou te dando elas de graça e ainda acha a situação engraçada?
- Não é questão de ser engraçada. É de eu ficar ainda mais confusa.
- Você soube se defender na floresta, não soube? Os poderes dela estão sendo transferidos pra você, agora vai da sua parte permitir se tornar uma guerreira. Só que antes, precisa encontrar a caixa da sua mãe. Lá terá outras respostas para o que você precisa, e vai entender melhor do que eu te explicando. Só que tem que me prometer algo.
- Lá vem você com essa loucura.
- Não comenta com mais ninguém que eu te contei sobre isso. É algo tão...perigoso e que a muito tempo eu não escuto ninguém mais falar. Precisa manter em segredo, pode ser?
- Ok. Como quiser. Ainda continuo achando que você é meio louco e problemático, mas pode ser. - Michael concordou com a cabeça. Seus lábios estavam retos feito uma linha, e os olhos voltados para o meu rosto. Desviei a cabeça um pouco para a lateral e foquei no que tinha a minha volta. Era uma praça pequena, com uma gramado recém aparado, sabia disso pelo cheiro fresco e gostoso que recendia em torno de mim. Havia poucas árvores, e todas elas concentradas a fazerem sombras em todos os bancos de madeira tingidos de branco em toda a praça. Não havia playground, crianças, famílias, não havia sobrado nada ali, e chegava a ser triste. Os moradores daquele bairro eram antigos, e pareciam despreocupados, esperavam apenas uma coisa, a certeza de que morreriam ali e ninguém mais saberia.

* * *
Faltava alguns minutos para que pudéssemos nos encontrar todos na fonte. Já havia visto alguns alunos passarem por mim e por Michael enquanto falávamos sobre qualquer outra coisa, menos sobre vampiros, sensei, guerreira e katana. Foi bom conhecer um pouco mais daquele garoto que me perseguia feito um louco desde o primeiro dia. Descobri poucas coisas mais o bastante para me sentir bem e compartilhar sobre mim também. Tínhamos algumas coisas em comum, além do gosto por filmes de terror, gostar de ouvir música, ler quadrinhos, desenhar e principalmente, amávamos doce. Disse melhor sobre sua família, como sua mãe em que pediu seu pai em casamento e quase o obrigou a fugir com ela diante dos pais e da situação financeira precária. Me falou melhor sobre seus irmãos estranhos, e como eles são distantes após conhecerem a palavra "relacionamento" e se afastarem do que antes era algo importante em suas vidas e quase essencial.

Me contou sobre a sua primeira namorada e como Jennifer o perseguiu logo em que entrou no colégio por vários motivos. Por ele ser o mais velho do primeiro colegial, por ser considerado rebelde por já ter carta, ter uma moto e fumar feito um louco quando esta nervoso.
- Já lutei boxer na intenção de ganhar uma grana legal e ir embora.
- Pra que ir embora?
- Digamos que a minha família não seja uma à mostra perfeita de união.
- Desculpa te informar mais...família nenhuma é perfeita. União só existe no começo, ou quando ambos estão afim da mesma coisa. - Protestei. Michael segurou em um dos meus ombros e enrugou os lábios.
- Enfim. Eu me ferrei bastante e apanhei também. Desisti do boxer, como também do MMA, ou qualquer coisa que envolva luta.
- Seu típico físico não te favorece tanto assim.
- Esta me chamando de gordo? - Comecei a rir. Olhando a expressão preocupada de Michael, apertando os próprios braços e coxas.
- Não. Estou te chamando de sem forma física. É bem diferente de te acusar de gordo ou magricelo. - Quem riu foi ele. Se aproximando melhor de mim e me tocando na lateral do rosto. Quem parou de rir ou sorrir foi eu, no exato momento. Engoli em seco na intenção de reviver as borboletas dentro do meu estômago, e não demorou para que eu sentisse cada bater de asas e cada uma delas rodando dentro de mim.
- Você não existe, garota. - Sua voz era mais baixa. Sabia que era somente para que eu escutasse e mais ninguém. Sua mão livre segurou a minha e entrelaçou seus dedos entre os meus.
- Me faça existir. Me faça ser de verdade. - Tentei. E pra minha surpresa ele compreendeu. Seus lábios voaram na direção dos meus. Eram os mesmos de sempre. Macio, quente e adocicado como até o gosto da sua saliva ao se misturar na minha. Seu perfume dançava sobre a minha narina a cada movimento as laterais que eu procurava fazer. Até para me beijar ou me tocar Michael tentava ser sensível, e era uma parte que esperava ser a única a conhecer.
- Hora, hora quem eu encontrei. Os dois pombinhos. Bom saber que o senhor Michael, não termina o relacionamento com alguém e já esta se atracando com outra. IN-CRÍ-VEL!! - Reconheci a voz e em segundos me vi separada de Michael. Era Jennifer, a mais piranha de todo o bando.